Estrada onde morreu Ana Paula Gil há 15 anos estava cheia de sinalização no dia a seguir ao acidente
Amigos e familiares recordam Ana Paula Gil que morreu há 15 anos na estrada que liga Martinchel ao Sardoal. O Tribunal já decidiu duas vezes que a culpa pelo acidente de Ana Paula Gil não pode morrer solteira. Mas 15 anos depois o processo ainda não chegou ao fim porque a Infraestruturas de Portugal e o sub-empreiteiro perderam em duas instâncias e agora recorreram para o Supremo Tribunal de Justiça
Ana Paula Gil saiu de casa no dia 13 de Dezembro de 2005, antes da hora de jantar, para ir buscar o filho mais novo, Rafael, na altura com 12 anos, à explicação, para depois o levar à natação. Naquele dia levou a carrinha Renault Express do marido, António Gil, para a viagem entre o Carvalhal e o Sardoal. Foi a explicadora de Rafael quem ligou para António Gil a informar que Ana Paula não tinha ido buscar o filho mais novo. Foi nessa altura que o marido começou a fazer o caminho que a esposa deveria ter feito quando encontrou o automóvel numa pequena ribanceira da Estrada Nacional 358. A esposa estava dentro do carro mas já sem vida. O acidente deverá ter ocorrido cerca de duas horas antes.
Ana Paula Gil, na altura com 34 anos, trabalhava nas bombas de combustível do Carvalhal e é descrita como uma boa profissional e mulher bem-disposta que tinha sempre uma palavra simpática para todos. O choque e consternação foram grandes sobretudo para a família. Electricista de profissão, António Gil criou os filhos sozinho, com a ajuda dos seus pais e sogros, irmãos e cunhados. Danilo Gil, o filho hoje com 29 anos, estudou um ano no Instituto Politécnico de Tomar mas decidiu seguir a carreira militar, assim como o seu irmão. Danilo esteve nos Fuzileiros enquanto Rafael, hoje com 27 anos, seguiu a carreira militar nas tropas paraquedistas. Actualmente, o mais velho é militar da GNR e o mais novo trabalha numa empresa de pronto-socorro. Danilo foi pai em Fevereiro de 2020 e Rafael foi pai em Fevereiro deste ano.
Vizinhos e amigos recordam a vítima do acidente de viação há 15 anos como uma pessoa simpática e de bem com a vida. Uma lápide em mármore destaca-se na berma da Estrada Nacional 358, entre Martinchel e Sardoal, onde Ana Paula Gil morreu em Dezembro de 2005 num acidente, numa altura em que a via estava em obras e sem sinalização e avisos de segurança. A lápide está sempre ornamentada com flores para que quem passa saiba que ali morreu gente de bem que e que foi traída pela incúria e falta de regras na segurança.
O Tribunal já decidiu duas vezes que a culpa pelo acidente de Ana Paula não pode morrer solteira. Mas 15 anos depois o processo ainda não chegou ao fim. O tribunal concluiu que não havia sinalização e que nem sequer a engenheira da Direcção de Estradas de Portugal se deslocava ao local para ver a correcta execução das obras.
Abel Lourenço, cunhado de Ana Paula, não esquece esse dia. Na altura trabalhava em Samora Correia, concelho de Benavente, quando teve conhecimento da tragédia. Assim que chegou ao local do acidente ainda encontrou os destroços do carro. A notícia espalhou-se pela aldeia do Carvalhal, concelho de Abrantes, e deixou todos consternados. A família de Ana Paula Gil era muito querida e acarinhada.
Abel Lourenço recorda a O MIRANTE que na altura do acidente a estrada estava em obras e havia um ressalto na via. “Como não havia sinalização, e era de noite, ela deve ter-se despistado com o desnível na estrada. O carro embateu num eucalipto e despenhou-se pela pequena ribanceira”, explica o cunhado de Ana Paula a O MIRANTE. Foi a esposa de Abel, irmã de Ana Paula, que ajudou a criar os sobrinhos.
O vereador com o pelouro do Trânsito na Câmara do Sardoal, Pedro Rosa, explica que aquele troço da estrada levou, no ano passado, uma camada de alcatrão aderente para que os carros circulem com mais segurança. O local onde morreu Ana Paula não voltou a ser palco de mais acidentes, embora 900 metros mais abaixo seja uma zona onde acontecem despistes e pequenas colisões entre veículos.
Batalha jurídica com 12 anos
A família de Ana Paula Gil anda há 12 anos numa batalha jurídica contra a Estradas de Portugal, agora denominada Infraestruturas de Portugal, e o sub-empreiteiro que estava a fazer o arranjo da estrada. O processo entrou em 2008, três anos após o acidente, no Tribunal Administrativo de Leiria, que demorou seis anos a tomar uma decisão. Na primeira instância as rés foram condenadas a pagar por danos não patrimoniais a cada um dos filhos da vítima 30 mil euros e 35 mil euros ao viúvo. Bem como 65 mil euros como indemnização pelo direito à vida e 135.987 euros como dano patrimonial futuro.
A Estradas de Portugal, considerada responsável pelo acidente por, como dona da obra, não ter acautelado a sinalização no local, recorreu para o Tribunal Central Administrativo Sul. A empresa pública tentou “lavar as mãos” da responsabilidade da morte, dizendo que o acidente se deveu a um caso fortuito, a circunstâncias desconhecidas e que não há testemunhas. Chega mesmo a tentar passar a culpa para a condutora dizendo que ela conhecia a estrada, que sabia que estava em obras e alegava que havia sinalização, o que é desmentido pela participação da GNR que refere que até à chegada ao local do acidente não havia qualquer sinalização a indicar obras na estrada.
O tribunal central demorou mais seis anos a analisar o recurso no qual as rés contestavam os valores das indemnizações, tendo concluído que os montantes definidos pelos juízes de Leiria são adequados, mantendo-os inalterados, tendo em conta que a vítima tinha na altura 34 anos. Apesar de duas decisões desfavoráveis, a empresa pública e o sub-empreiteiro resolveram recorrer para o Supremo Tribunal Administrativo, para tentarem escapar a uma indemnização de cerca de 296 mil euros, um valor próximo do que é pedido pela família, que é de 300.419 euros.
É uma vergonha para Portugal o que se passa no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria
O caso que O MIRANTE contou numa das últimas edições, e que já era do conhecimento público e foi notícia pela primeira vez no jornal online mediotejo.net, é mais um que envergonha o Estado Português e a democracia em Portugal.
O caso que contamos nesta página, assunto a que voltamos depois da manchete de uma das últimas edições de O MIRANTE, é o espelho de um país governado por políticos que dizem uma coisa e fazem outra. O Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria é onde se concentram todos os processos contra o Estado português. Por isso o tribunal não tem juízes nem funcionários suficientes e os processos arrastam-se anos e anos até chegarem a situações que violam todos os direitos humanos e de acesso a uma justiça igual para todos. O MIRANTE falou com advogados experientes que confirmam que na questão da Justiça há interesses que não têm ideologia: por isso não se ouve a voz dos partidos da oposição a combaterem o monstro. “15 anos não é nada comparado com outros casos que conheço e a que até estou ligado como advogado”, diz Santana Maia-Leonardo confrontado com a história da família de Ana Maria. “O nosso Estado é uma vergonha; e os advogados também não protestam contra esta injustiça, que fere gravemente a democracia, porque todos ganham com isto; só o povo desprotegido é que sofre na carne e na pele esta miséria de país em que vivemos”, desabafa.
O Estado tem no Tribunal Administrativo e Fiscal processos que vai perder de caras porque são situações mal geridas pela administração pública, e de forma injusta, nomeadamente questões relacionadas com indemnizações e questões fiscais. Para não pagarem, ou para pagarem o mais tarde que puderem, fazem do sistema de Justiça uma coisa intolerável, vergonhosa, que deveria fazer corar de vergonha os políticos do Poder, mas também os da oposição, porque de verdade são todos coniventes com o sistema corrupto que está montado para favorecer determinadas classes”, acusa Santana Maia-Leonardo.
“Não contratam juízes porque lhes convém; Portugal é uma máquina corrupta ao serviço de quem tem dinheiro e poder”, diz ainda Santana Maia-Leonardo que acrescenta: “Não é só na Justiça. Passa-se o mesmo nas questões relacionadas com a legalização das drogas, a violência doméstica, a protecção de menores e no sistema de ensino. Ninguém faz nada, ninguém quer que isto funcione bem, porque há muita gente a comer do mesmo tacho”, acusou.
O facto de o Tribunal demorar cerca de uma dezena ou mais anos a tomar uma primeira decisão origina atrasos no julgamento final que podem chegar a duas dezenas de anos. Fonte da justiça explicou a O MIRANTE que “depois de uma primeira decisão judicial há prazos muito alargados para os recursos e se houver duas decisões diferentes de tribunais diferentes o tempo dos recursos ainda pode ser mais dilatado”, explicou.