Unir as Mãos contra a fome e a miséria escondida
Um grupo de moradores de Alverca juntou-se no pico da pandemia para garantir ajuda alimentar a quem mais precisa. A procura foi tanta que o apoio já chega à margem sul do Tejo. O trabalho do grupo Unir as Mãos mereceu o galardão de Mérito Social da cidade.
Um grupo de cidadãos de Alverca juntou-se espontaneamente em Abril do ano passado, aquando do confinamento motivado pela pandemia, para ajudar com bens alimentares quem estava a passar dificuldades e perdera o emprego. Ana Paula Lobo, natural do concelho de Vila Franca de Xira e que cresceu no Bom Sucesso, Alverca, foi a primeira a oferecer-se nas redes sociais para ajudar quem precisava. Rapidamente a amiga, Maria Alice, se juntou e o grupo começou a ganhar dimensão. A intervenção solidária na comunidade valeu ao grupo Unir as Mãos de Alverca o galardão de Mérito Social na sessão solene do Dia da Cidade, realizada em Julho último.
Maria Alice nasceu em São Tomé e Príncipe mas veio para Portugal com três anos e conhece bem o drama da fome. “Cheguei a ver a minha mãe dizer que estava cheia para nos deixar comer quando percebia que ela tinha fome. Sei o que isso custa e sei o que é querer comer e não ter”, confessa a O MIRANTE.
Um dia, ao ver duas irmãs a pedir à porta de um hipermercado em Alverca, Maria Alice decidiu fazer alguma coisa para ajudar e a rede de solidariedade ganhou asas. Uma pessoa emigrada em Londres ofereceu um vale de compras de 250 euros. Os bombeiros da cidade e o comércio local de Alverca abriram portas e começaram a doar alimentos e outros bens que o grupo precisava. Em poucos meses centenas de pessoas começaram a ser apoiadas, não apenas no concelho de Vila Franca de Xira como nos concelhos vizinhos de Alenquer, Azambuja, Lisboa e até em Almada e Setúbal.
“Começámos a ter domingos em que saímos de casa às sete da manhã e só voltamos à noite. As pessoas de Alverca tinham um pouco de vergonha e por isso nem toda a gente nos procurava, mas com o tempo isso foi mudando porque as necessidades aumentaram muito”, explicam. Hoje estão mais de 40 pessoas no concelho de Vila Franca de Xira à espera de receberem os cabazes do grupo Unir as Mãos.
Ana Paula e Maria Alice lamentam que se viva cada vez mais numa sociedade egoísta onde a maior parte das pessoas prefere ignorar quem está ao seu lado de barriga vazia. “Penso muito nas crianças e nas mães que estão demasiado desorientadas para dar comida aos filhos porque não a têm. Há muita miséria escondida. Saímos das rondas com o coração partido e lágrimas a escorrer pela cara”, confessam.
Algumas famílias já são acompanhadas por bancos alimentares e serviços sociais mas a comida que lhes é dada não chega para as necessidades. Em algumas situações, poucas, o grupo percebeu que houve aproveitamento mas quando isso aconteceu as famílias nunca mais foram apoiadas.
A ajuda preciosa da junta de freguesia
Desde a primeira hora que o presidente da junta, Carlos Gonçalves, apoiou o grupo. Não apenas cedendo um espaço como contribuindo com alimentos. “Temos muito a agradecer ao Carlos Gonçalves porque tem sido incansável. Tem trabalhado connosco sempre que precisamos e ele próprio vai fazer as compras e oferece-as ao grupo para ajudarmos as famílias”, destacam.
Os membros do Unir as Mãos dizem que não agem para obter prémios ou distinções mas admitem que serem agora cidadãos de mérito da cidade é importante para fazer chegar a mensagem mais longe e dessa forma captar mais gente que possa e queira ajudar.
O brilho nos olhos de quem é ajudado e o sorriso são os melhores pagamentos que os voluntários podem ter. “Infelizmente, o crescimento rápido que o grupo tem tido só prova como as coisas estão más. Bom seria se houvesse poucas pessoas a pedir ajuda. A pandemia veio afectar as vidas de muita gente”, lamentam.
Juntamente com Maria Alice e Ana Paula, o grupo inclui também Bruno Mendes e Sílvia Guerra e os voluntários Ana Félix, Lurdes Almeida, Filomena Ramos, José Ramos, Eva Matias, Rúben Matias, Ana Maria Mateus, Raquel Silva e Lucas Martins.
Numa casa vazia à espera da morte
Ana Paula e Maria Alice avisam que é preciso estofo emocional para aguentar algumas das situações que encontram. Como o caso de um casal de brasileiros que estava sentado no jardim de Alverca com os filhos sem nada para comer, passando pela situação de uma mulher vítima de doença oncológica que, em casa, não tinha nada tirando um sofá e um colchão. “Só o olhar que nos deu confirmou tudo, estava cheia de fome”, lamenta Maria Alice.
No meio de tantos casos tristes há também histórias com final feliz, como o de uma jovem angolana, mãe solteira de duas crianças, sem qualquer apoio familiar, que vivia numa garagem e estava infectada com Covid. Graças aos voluntários recebeu comida durante o tempo em que teve de cumprir isolamento e já conseguiu ser apoiada por uma instituição. “Ligou-nos a agradecer tudo o que fizemos por ela e, como já não precisa, gostava de retribuir e ajudar com o pouco que pode, com cinco euros, para comprarmos alimentos para outras pessoas que precisem. É muito bonito”, recordam.