Literacia: o discurso fácil está a matar a capacidade de interpretação
No Dia Internacional da Literacia, que se assinala a 8 de Setembro, falámos com uma professora e um sociólogo sobre o que está a acontecer à nossa sociedade atraída pelas redes sociais, pelo facilitismo, pela ideia de que pensar cansa. Hoje a literacia já não tem a ver com saber ler e escrever ou não. Relaciona-se com a capacidade de interpretar, pensar e de contribuir para novas gerações que façam a diferença. Mas o que se vê é um caminho onde cresce o facilitismo, o desinteresse pela leitura e, de certo modo, pelo conhecimento. E isso sobressalta os que sabem que bons níveis de literacia fazem seres mais bem preparados.
Uma linguagem pobre não nos deixa pensar bem ou até mesmo apenas pensar
José Garrucho Martins, sociólogo, investigador doutorado, natural de Alpiarça, relaciona a literacia com a capacidade de absorvermos o conhecimento, que por sua vez está relacionada com a capacidade de interpretarmos o que lemos ou ouvimos e com a compreensão de várias disciplinas como a Matemática.
A forma como nos relacionamos com a linguagem, o vocabulário que adquirimos e usamos, influencia de sobremaneira o pensamento. Quanto menor for a capacidade de usarmos a leitura e a escrita para adquirirmos ou transmitirmos conhecimentos, ou para interpretarmos o que nos dizem ou que lemos, mais dificuldade temos em pensar bem e até mesmo em, simplesmente, pensar. José Garrucho Martins, sociólogo, considera que quando temos problemas no uso da linguagem, quando não temos um vocabulário elaborado, temos mais dificuldade também em aprender.
Hoje é rara a pessoa que não sabe ler ou escrever, mas isso não quer dizer que tenha um bom nível de literacia. O dia 8 de Setembro é o Dia Internacional da Literacia, criado pela Unesco em 1967, para chamar a atenção para as questões da alfabetização, mas hoje a palavra está mais associada às capacidades de escrita e de leitura tendo em conta a aprendizagem ao longo da vida. As redes sociais vieram expor os níveis de literacia. O sociólogo de Alpiarça, doutorado e investigador da Universidade Nova de Lisboa, diz que muitas pessoas nas redes sociais usam o que se chama o código restrito, constituído por pouco vocabulário e uma forma de organizar o discurso muito simples, com mensagens implícitas no discurso que só quem usa a mesma forma percebe.
As pessoas pensam a partir da linguagem e uma estrutura complexa da linguagem, definida como código elaborado, permite entender coisas mais abstractas, perceber outras disciplinas como a Matemática, por exemplo, e isso tem a ver em parte com o sucesso ou insucesso escolar. A linguagem que se vê muitas vezes nas redes sociais, estereotipada e redundante, não permite que se pense, que se compreenda. No percurso escolar é preciso compreender, interpretar e quando um professor fala os alunos interpretam de maneira diferente, consoante, em grande parte, o que adquirem no seio familiar.
José Garrucho Martins considera que os bons níveis de literacia, tendo em conta que a aprendizagem também é informal, começam em casa. É na forma como as famílias usam a linguagem, utilizam um vocabulário mais elaborado ou não, como se relacionam com a cultura e o conhecimento, que as crianças podem ter ou não níveis mais ou menos elevados de literacia. Ou seja, uma criança que tenha contacto com uma linguagem mais elaborada pode, em contexto escolar, ter uma posição mais privilegiada no que toca à compreensão do que é comunicado pelos professores.
Há cada vez níveis mais baixos de literacia nos alunos
Nos últimos 28 anos centenas de alunos passaram pela sala de aula de Olga Matos, professora de Português e Literatura, em Abrantes. Natural da Praia do Ribatejo, considera-se pouco convencional mas garante que nas suas aulas nem tudo é diferente do habitual. A excepção está na forma como incentiva os alunos a ler, sendo que ao longo dos anos tem travado um combate à falta de literacia que encontra em contexto escolar.
Aos 52 anos Olga Matos admite estar preocupada com os baixos níveis de literacia que cada vez mais encontra na sala de aula. Quem entra para a sua aula de Literatura, disciplina que lecciona há mais de uma década, não deve esperar nada de diferente nos métodos de ensino, mas pode contar com um forte incentivo à capacidade de interpretar. “Não quero ser doutoral e dizer como tem que ser, gosto que eles contestem e discordem porque para discordarem de mim têm que argumentar e compreender. Quero a opinião deles e cada vez sinto mais dificuldade nisso”, confessa a professora, que admite que o actual sistema de ensino está obsoleto pois os alunos identificam-se cada vez menos com a escola. Mas são muitas vezes eles que não reagem bem à tentativa de mudança.
Nos primeiros anos em que leccionou literatura teve alunos brilhantes e a maioria tinha gosto pela leitura, uma realidade que pouco encontra nos dias de hoje. “A sociedade de hoje padece de um analfabetismo funcional, ou seja, todos sabemos ler e escrever, mas a maioria não percebe aquilo que escreve e tem grandes dificuldades em escrever o que quer”, lamenta a professora que diz utilizar muitas vezes a ironia e o sarcasmo como forma de despertar a atenção dos alunos e perceber se têm capacidade de interpretarem o que diz nessas intervenções.
Para Olga Matos toda a sociedade é responsável pelos baixos níveis de literacia. “É fácil culpar a tecnologia, mas na verdade todos facilitamos em algum momento e sucumbimo-nos ao telemóvel e à internet. Quem é pai tem que ter um esforço acrescido. Ao fim de um dia frenético é mais fácil deixar o filho entregue ao computador do que discutir uma notícia de jornal ou lerem o mesmo livro e debaterem-no em conjunto”, explica a professora que acredita que o gosto pela leitura deve vir desde pequeno para que a criança aprenda desde logo a manusear os livros, mesmo antes de saber ler.
Olga Matos não vê a tecnologia como uma inimiga, mas como aliada no processo de compreensão em que deve haver um equilíbrio. O telemóvel, por exemplo, é a ferramenta mais à mão para se pesquisar o significado de uma palavra que se desconhece. O problema é que isso não acontece com frequência. Para a professora devia-se libertar a escola da pressão dos exames nacionais. Em vários países, quando os alunos querem entrar na faculdade fazem exame na própria instituição para onde querem entrar. Isso iria permitir que os professores dessem mais atenção a cada aluno.