Sociedade | 11-04-2022 12:00

Edição Semanal. Crime ambiental sem castigo em Santa Margarida da Coutada

Fernando Gaspar e Cátia Bento não podem cultivar os seus alimentos no seu próprio terreno, em Santa Margarida da Coutada, uma vez que estes foram contaminados

Fernando Gaspar e Cátia Bento compraram uma casa com um terreno para cultivarem os seus alimentos e dar mais qualidade de vida ao filho que sofre de uma doença crónica grave. O sonho ficou destruído quando um vizinho utilizou, há cerca de uma década, um perigoso herbicida que contaminou os solos e a água dos poços de toda a vizinhança. Câmara de Constância e entidades ambientais não querem saber e o processo em tribunal sofre constantes atrasos.

Fernando Gaspar e Cátia Bento estavam longe de imaginar o calvário que iam passar quando compraram uma casa num terreno com cerca de dois mil metros quadrados (m2) em Santa Margarida da Coutada, concelho de Constância. Há uma década, o casal decidiu investir numa propriedade com terreno suficiente para cultivar alimentos para seu consumo e do filho Francisco, de 11 anos, que sofre de uma doença crónica grave que afecta os rins, fígado e pâncreas.
Nos primeiros dois anos correu tudo como planeado. O problema foi quando um dos vizinhos decidiu utilizar na sua propriedade o perigoso herbicida Hyvar X (Bromacil) que acabou por contaminar o terreno de cultura e o poço que fornecia água para rega das suas hortícolas. A precipitação do vizinho, segundo O MIRANTE apurou, teve o mesmo efeito noutros terrenos. Recorde-se que a utilização de Bromacil foi proibida na União Europeia há alguns anos.
O MIRANTE foi ao encontro de Fernando Gaspar e Cátia Bento, 36 e 35 anos, na sua casa situada na Rua das Varandas. Está um dia quente de Primavera e o jovem Francisco aproveita para jogar à bola com o seu cão “Thor” no terreno onde era suposto estarem cultivados os alimentos para as suas refeições. Os pais levam o repórter para uma sala na habitação que reconstruíram assim que a compraram quando Francisco tinha apenas um ano.
Um sofá confortável e antigo serve de assento para uma conversa de meia hora sobre o desgosto que é acordar todas as manhãs e verem o sonho de viver numa “quintinha” desfeito por causa da negligência de um vizinho. “Costuma dizer-se que não escolhemos os vizinhos que temos e este estragou-nos a vida”, lamenta Fernando Gaspar. As dezenas de documentos colocados em cima da mesa confirmam a história que se segue.
Fernando Gaspar, tractorista, e Cátia Bento, empregada doméstica, compraram a casa para terem mais tranquilidade e darem mais qualidade de vida ao filho. Ambos admitem que nunca tiveram grande apetência para a escola, mas sempre gostaram do trabalho agrícola. Durante dois anos cultivaram muitos produtos e plantaram várias árvores de fruto no terreno à frente de sua casa. Só que em 2013 um dos vizinhos decidiu fazer um muro na extrema do seu terreno e utilizou o perigoso Bromacil para matar os marmeleiros bravos que ali se encontravam.
Com o passar do tempo, e com as águas da chuva, grande parte da terra ficou negra. As árvores morreram, nada cresce, e a água do poço, que fica a cerca de 10 metros do muro construído, ficou contaminada. Fernando Gaspar confrontou o vizinho que admitiu o erro, mas pediu-lhe para que não lhe “desgraçasse a vida” e que em dois ou três anos o veneno desapareceria.
Ao fim de dois anos sem cultivar mandou analisar a água do poço a título particular e constatou-se que continuava muito contaminada com 1240 uG/L do perigoso herbicida. “Depois desta análise é que tomei consciência que, para além de ter sido lesado no meu património, estava em causa o ambiente e a saúde dos que aqui vivem. Não quero prejudicar ninguém, mas será que este erro não terá tido já consequências para a nossa saúde”, questiona. Passados nove anos da utilização do produto a água do poço ainda apresenta uma quantidade de 4,69 uG/L, quando o máximo permitido por lei é de 0,1.

“Entidades não querem saber do nosso drama”
Desde 2015 que o casal tem sido incansável a contactar entidades que o possa orientar na procura de uma solução para o problema. A primeira a ser contactada foi a Câmara de Constância que, quer durante a presidência de Júlia Amorim (CDU) ou de Sérgio Oliveira (PS), alegou não ser assunto da sua competência. A APA (Agência Portuguesa do Ambiente), a CIAV (Centro de Informação Antivenenos), a ARH (Administração de Região Hidrográfica), a DGAV (Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária) e o SEPNA (Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente) da GNR reconhecem que a situação pode ser enquadrada num crime ambiental, mas ficam-se por aí e rejeitam ter competência na matéria.
Existe um processo em tribunal a decorrer, colocado pelo casal, mas que tem sido constantemente atrasado. O vizinho já admitiu em tribunal ser o responsável, mas nos últimos anos tem vindo a tentar fugir ao problema que causou a toda a vizinhança. “Emigrou e tem-se vindo a desfazer de todos os bens que tem em seu nome porque lhe estamos a exigir em tribunal uma indemnização. Até a sua casa colocou à venda, mas nós colocámos uma providência cautelar para que ele não a venda até terminar o processo. No entanto, não se vislumbra fim à vista e parece que ninguém se quer mexer ou tomar uma atitude”, sublinha Fernando Gaspar.
O casal confessa que já pensou em vender a casa, mas tem noção que a mesma desvalorizou e ninguém quer ter uma propriedade com terras envenenadas. “Não é fácil aceitar as consequências de uma coisa que não fizemos e que destruiu o sonho da nossa vida. Toda a gente sabe quem é o responsável, aceitamos que não o tenha feito de forma intencional, mas os seus actos constituem um crime ambiental e prejudicaram muitas pessoas”, terminam.
O MIRANTE vai continuar a investigar o foco de contaminação em Santa Margarida da Coutada uma vez que tem recebido várias queixas de outros lesados que estão impedidos de cultivar nos seus terrenos e utilizar água dos seus furos.

À Margem / Opinião

Um país de camaleões

Em quantos países do mundo pode acontecer aquilo que relatamos neste texto sem que as autoridades intervenham de imediato, os prevaricadores sejam castigados e o castigo sirva de exemplo? A pergunta tem uma resposta fácil: na maioria dos países desenvolvidos a cidadania funciona e as autoridades locais têm responsabilidades que vão muito para além de tratarem dos problemas urbanos.
Numa altura em que tanto se critica o Governo, está na hora dos autarcas reivindicarem mais responsabilidades nas questões ambientais, de saúde e de organização do território, entre outros. O presidente da Câmara de Constância não merece o lugar que ocupa se fechar os olhos aos crimes ambientais que se passam no seu concelho e que põem em causa a saúde pública e os interesses das suas populações. O exemplo serve para todos os autarcas do país.
Neste caso a cidadania também não acompanhou a falta de responsabilidade política dos autarcas de Constância, o que é lamentável.
A regionalização serve para resolver estas injustiças? Os políticos locais têm capacidade para se substituírem aos organismos do Estado que fazem de uns filhos e de outros enteados? Se esta situação se passasse às portas de Lisboa as televisões não teriam já obrigado os políticos do Governo a saírem da concha? É evidente que sim.
Os autarcas não são só os parentes pobres dos governos; são também os políticos inúteis e inábeis que nem sequer sabem o caminho para os ministérios e muito menos sabem fazer ouvir a sua voz na defesa dos seus interesses e das suas populações.

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