Elisabete Nunes sobreviveu por milagre ao acidente ferroviário da Póvoa de Santa Iria
No dia 5 de Maio de 1986 Elisabete Nunes viajava na última carruagem do comboio suburbano abalroado por outra composição quando se encontrava parado na Póvoa de Santa Iria. Sentiu um impacto tremendo, viu morrer a melhor amiga e outros companheiros de viagem e a sua vida tem sido uma luta para superar o que viveu nesses momentos de horror. “Tento esquecer mas é difícil”, confessa a O MIRANTE.
Trinta e seis anos depois a memória do trágico acidente ferroviário da Póvoa de Santa Iria não se apaga e por isso está na hora de a cidade criar um memorial que evoque todos os que estiveram envolvidos no desastre, que ceifou 17 vidas e causou 83 feridos. A ideia é defendida por Elisabete Nunes, 52 anos, um rosto conhecido do Sobralinho e que foi uma das poucas pessoas que viajavam na última carruagem a sobreviver.
O único memorial existente no concelho foi inaugurado em Alverca, em Maio de 2021, mas apenas regista a memória das sete vítimas da cidade. Pela primeira vez Elisabete conta a sua história de superação pessoal a O MIRANTE, marcada pela tragédia mas também pela vontade de viver. Era uma adolescente de 16 anos que ia para Santa Iria da Azóia trabalhar e, ironia do destino, nem sequer costumava apanhar aquele comboio, um suburbano proveniente de Azambuja. “Estava atrasada e ia perdendo o comboio. Tive de correr e entrei na última carruagem em Alhandra”, lembra. Já estava sentada quando viu um casal de Alhandra, Rui Benavente e Maria de Lurdes, a correr para apanhar o comboio. “Eram namorados e iam casar. Estava um dia nublado. Parecia que nada nos podia impedir de ir naquela viagem”, afirma.
Em Alverca entraram mais passageiros incluindo a sua amiga Florbela Raposo. “Tínhamos acabado um curso de bordados e festejado no fim-de-semana numa discoteca. Ela estava na faculdade e era uma aluna brilhante”, recorda. O que aconteceu depois, às 12h10, ainda é claro na sua memória. Ao parar na estação da Póvoa de Santa Iria foram os gritos de um homem junto ao comboio, a pedir a toda a gente que fugisse, que a alertaram. “Sentia-se um barulho estranho, pareceu uma eternidade mas foram alguns segundos. Vi um vulto ao longe a aproximar-se, dei a mão à minha amiga e fugimos para a escada. Era aí que estava quando se deu o embate. Era como estarmos dentro de uma batedeira. Fomos sacudidos por todo o lado”, recorda.
Um comboio rápido que saiu da Covilhã às 06h15 não accionou o travão da locomotiva desrespeitando um sinal vermelho que se encontrava antes da estação e embateu violentamente no comboio onde seguia Elisabete. A pessoa que momentos antes gritara do exterior do comboio estava morta, bem como o casal de namorados que entrou em Alhandra. Por entre os corpos e a confusão, Elisabete puxou pela mão da amiga constatando com horror que ela morrera com o crânio esmagado a poucos centímetros do seu ombro. “Marcou-me muito. Tento esquecer mas é difícil. Hoje já consigo falar melhor do que aconteceu e tenho vivido muito por ela. Agradeço a Deus por ter estado comigo naquele momento”, recorda.
Cinco meses internada
Elisabete Nunes ficou com uma perna partida e o primeiro socorro foi dado pelos Bombeiros da Póvoa de Santa Iria. Perdeu muito sangue e diz ter sobrevivido por milagre. Às 12h30 foi colocada numa ambulância juntamente com um bebé que foi encontrado pelos bombeiros e que no embate deslizou por entre os bancos. Foram para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Elisabete ficou cinco meses internada e realizou cinco cirurgias. Entrou numa depressão e chegou a tentar pôr termo à vida no hospital, ingerindo vários medicamentos. Sofreu várias paragens cardiorrespiratórias e foi salva por uma lavagem ao estômago feita de urgência. Esteve três dias em coma.
Voltar à vida normal foi difícil. “Tive de reaprender a andar. Custou muito voltar a casa. Cheguei a ir bastante à campa da minha amiga tentar perceber por que motivo nos aconteceu aquilo”, lamenta, com os olhos marejados de lágrimas. Certo dia, com a ajuda da mãe, que diz ter sido o seu grande amparo, atirou os anti-depressivos que tomava para o lixo e decidiu superar o acidente. Encontrou um marido “fantástico” e que a tem apoiado bastante e são hoje uma família com cinco filhos e três netos.
Já viajou por todo o mundo e voltou a conseguir andar de comboio. Ao fim de um ano de fisioterapia conseguiu voltar a usar a perna fracturada e a dobrar o joelho mas ficou com uma incapacidade de 61,5%. Recebeu uma indemnização da CP pelo acidente e a empresa pagou-lhe um curso de cabeleireiro e gestão de empresas. Ainda hoje tem apoio de saúde da CP, com psicólogo e ortopedista sempre que precisa. “Não me deixaram desamparada”, agradece. Há 23 anos realizou o seu sonho e abriu um salão de cabeleireiro no Sobralinho, que é um sucesso. “Fiz as pazes com o passado e foi preciso muita força de viver”, conclui.