Pesadelo em Constância por causa da utilização de herbicida perigoso
O MIRANTE continua a dar voz às vítimas dos crimes ambientais sem castigo em Santa Margarida da Coutada. Várias famílias estão impedidas de cultivar nos seus terrenos por utilização ilegal de um herbicida que contaminou uma vasta área e arruinou a vida a muitas pessoas. Nesta reportagem contamos a história de João Dias e Lina Aragão, parceiros num projecto de agricultura biológica que chegou a receber dezenas de crianças em visitas de estudo.
“Hortas da Aldeia” é o nome de um projecto de agricultura biológica que foi destruído pelos crimes ambientais sem castigo que têm ocorrido em Santa Margarida da Coutada, no concelho de Constância, desde 2011. Depois de O MIRANTE contar a história de Fernando Gaspar e Cátia Bento (ver caixa), falámos com João Dias e Lina Aragão, companheiros há cerca de duas décadas, cujas vidas foram do sonho ao pesadelo. Coliformes fecais e a utilização de um perigoso herbicida por parte de um vizinho, contaminaram os solos e os poços de água de várias casas de família.
No caso de João Dias arrasou com uma produção hortícola de mais de dois hectares que, nos seus melhores tempos, chegava a receber visitas de estudo de várias escolas da região. Na última década João Dias e Lina Aragão não têm poupado esforços a contactar entidades e autoridades que os pudessem orientar na procura de uma solução para o problema, mas as respostas que receberam foram sempre inconsequentes.
João Dias fez carreira militar na Força Aérea Portuguesa ao longo de três décadas, depois de ter tirado o curso de aviação em Alverca do Ribatejo. Viveu a guerra do Ultramar na Guiné e cumpriu várias missões humanitárias tendo decidido voltar às origens e dedicar-se à agricultura, uma actividade pela qual se apaixonou em criança por influência dos seus avós. Restaurou a casa dos pais e em 2003 começou a trabalhar os dois hectares de terreno nas traseiras da habitação. Fez um curso intensivo de agricultura biológica e poucos meses depois começou a cultivar agrião e outros produtos hortícolas.
O sucesso das vendas originou a criação da empresa “Hortas da Aldeia”. Vendia agrião para todo o país. Chegou a transportar na carrinha mais de 100 kg de produto. “Era o nosso ex-libris. Como é uma planta que gosta muito de água, o facto de ter seis poços levou a que tivéssemos optado por esta cultura. Ganhámos dinheiro e governávamos a nossa vida porque tínhamos um produto de qualidade premium e centenas de clientes”, confessa.
A conversa com O MIRANTE decorre na sala de estar da sua casa e é acompanhada por Lina Aragão. A cumplicidade entre os dois é evidente e o à vontade com o repórter permite alguma informalidade na comunicação. “Meu amigo, perdi muitos anos de vida e alguma sanidade mental nos últimos 10 anos”, desabafa João Dias. “Imagine o que é estar estes anos todos a ouvi-lo falar diariamente em Bromacil e coliformes fecais”, afirma Lina Aragão. A partilha com o repórter não é feita em tom dramático, mas sim com um sorriso irónico, de quem ainda sonha que um dia o tormento vai acabar.
Primeiro problema: coliformes fecais
O calvário começou em 2011 quando João Dias mandou analisar uma charca de água e detectou a presença de coliformes fecais, uma contaminação originária de águas residuais domésticas ou de excrementos de animais. Perto do seu terreno há uma estação elevatória, instalada pelo município, que João Dias afirma não ter capacidade para escoar os esgotos e, por isso, todos os resíduos vão parar aos seus terrenos. “Numa das últimas análises que fiz foram detectados 8 mil coliformes fecais quando o máximo permitido é 100. Imagine este filme há 12 anos sem arranjarem uma solução”, lamenta.
Uma mão não chega para contar o número de entidades que contactou ao longo dos anos. A primeira foi a câmara municipal, na altura o presidente ainda era Máximo Ferreira. Recentemente, com Sérgio Oliveira (PS), os contactos repetem-se, mas a postura do presidente, segundo conta, não tem sido a melhor. “Continua a desvalorizar e a dizer que a história não é assim, quando está tudo provado pelas análises à água. Recentemente, chegou a dizer na comunicação social que estou a insistir desnecessariamente quando estou apenas a lutar pela minha vida”, vinca.
Ao longo destes anos João Dias também contactou a APA (Agência Portuguesa do Ambiente), a CIAV (Centro de Informação Antivenenos), a ARH (Administração de Região Hidrográfica) Tejo, a DGAV (Direcção-Geral de Alimentação e Veterinária), a IGAMAOT (Inspecção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território) e o SEPNA (Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente) da GNR. Todas reconhecem o problema, mas as suas denúncias caíram em saco roto.
Segundo problema: Bromacil
Em 2016 João Dias recebe uma carta da APA, através da ARH, a comunicar a contaminação do solo e água subterrânea devido à utilização de herbicida. O herbicida chama-se Bromacil e foi utilizado por volta de 2013 quando um vizinho decidiu fazer um muro na extrema do seu terreno e utilizou o perigoso herbicida para matar os marmeleiros bravos que ali se encontravam. Recorde-se que o uso de Bromacil foi proibido na União Europeia, no início dos anos 2000, por ser um produto carcinogénico. Os documentos que João Dias mostra a O MIRANTE revelam que no ano passado um dos poços registou 8,8ug/l de Bromacil, quando o máximo é 0,1ug/l.
João Dias afirma que não quer apontar o dedo a ninguém, mas não esconde que o individuo que utilizou o produto cometeu um acto irreflectido e que condenou a vida a muitas famílias. Sobre este assunto, João Dias refere que a câmara rejeita envolver-se no assunto “de uma forma inexplicável”.
Actualmente, o terreno que foi uma referência em termos de agricultura biológica, está entregue a cerca de uma dezena de cabras que ali foram colocadas como atracção turística para os alunos e professores que os visitavam. Hoje servem para comer as ervas e como companhia de João Dias e Lina Aragão.
O sonho desfeito de Fernando Gaspar e Cátia Bento
A história de João Dias e Lina Aragão é idêntica à de Fernando Gaspar e Cátia Bento. Recuperamos nesta edição o essencial do que escrevemos sobre o casal na edição de 7 de Abril.
Fernando Gaspar e Cátia Bento vivem um pesadelo que começou dois anos depois de comprarem uma casa num terreno com cerca de dois mil m2 (situado a cerca de 200 metros da casa de João Dias). Há uma década o casal decidiu investir numa propriedade com terreno suficiente para cultivar alimentos para seu consumo e do seu filho Francisco, de 11 anos, que sofre de uma doença crónica grave. Nos primeiros dois anos correu tudo como planeado. O problema foi quando o vizinho decidiu utilizar o Bromacil. Com o passar do tempo e com as águas da chuva, grande parte da terra ficou negra, as árvores morreram e a água do poço, que fica a cerca de 10 metros da propriedade do vizinho, ficou contaminada.
Fernando Gaspar confrontou o vizinho que admitiu o erro, mas pediu-lhe para que não lhe “desgraçasse a vida” e que em dois ou três anos o veneno desapareceria. Depois de colocarem um processo em tribunal, onde o indivíduo assumiu responsabilidades, nada foi feito e o processo ainda não está concluído.
Na altura que O MIRANTE falou com Fernando Gaspar ficou a saber que o vizinho tem vindo a tentar fugir ao problema que causou. “Emigrou e tem vindo a desfazer-se de todos os bens que tem em seu nome porque lhe estamos a exigir em tribunal uma indemnização. Até a sua casa colocou à venda, mas colocámos uma providência cautelar para que ele não a venda até terminar o processo”, assegurou.
Fotografia de um mapa desenhado por João Dias com os terrenos contaminados, segundo o próprio, num perímetro de cerca de 500 metros em relação à sua casa. A vermelho estão os poços de água contaminados com Bromacil e a branco os que estão contaminados com coliformes fecais. O tópico que diz “Início” remete para a propriedade do vizinho que utilizou, de forma ilegal, o herbicida Bromaci.