Os 106 anos de Francisco Filipe são um mistério para a ciência
Francisco Filipe é um dos cinco mil centenários existentes em Portugal.
Aos 106 anos, para o “avôzinho”, alcunha que ganhou desde que se mudou para um lar em Aveiras de Cima, ajudou ter nascido com uma saúde de ferro e ter levado uma vida com “juízo”. Parece simples, mas descodificar a longevidade continua a ser um desafio para a ciência.
Quando Francisco Filipe nasceu a Alemanha declarava guerra a Portugal no contexto da I Grande Guerra e iniciava-se o 13º Governo da Primeira República Portuguesa. Corria o agitado e bélico ano de 1916, que na povoação da Lapa, no Cartaxo, onde nasceu, se desenrolava com a calmaria de todos os dias. A mesma calmaria com que o centenário encara o tempo que vai passando sem grandes tumultos no Lar Nossa Senhora da Purificação, em Aveiras de Cima, para onde se mudou há quatro anos.
De cabelo branco e camisa listada, Francisco Filipe, carinhosamente tratado por todos como “o avôzinho”, recebe O MIRANTE no jardim da instituição. A luz do sol fere-lhe a vista que já não lhe permite ler as letras gordas dos jornais, outrora o seu passatempo predilecto. Percorreu estradas e caminhos no seu meio de transporte de eleição, a bicicleta, que chegou antes de amealhar o suficiente para comprar o Ford cinzento. Agora, diz, já não se levanta da cadeira de rodas quando pela manhã deixa os lençóis da cama. Acorda, por norma, antes de as funcionárias chegarem ao quarto partilhado para o ajudarem com a higiene e a roupa, que já não escolhe. “Toda a vida me levantei cedo para ir trabalhar e cuidar da horta”, diz, balbuciando baixinho os legumes que plantava, colhia e entregava à esposa, Rosa Paulo, para fazer a sopa.
A memória vai ficando mais fraca a cada dia. Falar do presente é actualmente mais difícil do que viajar para as memórias do passado. Essas são mais claras, por vezes, porém, igualmente confusas. “Tem dias melhores e outros piores, o que é normal com a idade”, adverte a supervisora, Ilda Gaspar, a funcionária do lar a quem o centenário não larga a mão durante a conversa. Francisco Filipe debruça-se e solta uma gargalhada instantânea, cada vez que a pergunta é sobre os seus tempos de juventude. “Ia de bicicleta para os bailes dançar com as raparigas da minha idade”. Depois, aos 20 anos, casou com Rosa, “uma rica mulher”, com a qual teve uma filha e um filho, que o visitam com regularidade.
Aceitar as limitações da idade é parte do processo de envelhecimento
Envelhecer tem sido um processo tranquilo para Francisco Filipe, que até depois dos 100 anos viveu em habitação própria, na Lapa, recebendo apoio domiciliário. Caminhou com a ajuda de um andarilho até as pernas lhe falharem já depois de completar os 102. A saúde, confessa entusiasmado, sempre foi de ferro. “Graças a Deus que a tenho. Saúde e sorte na vida era o que pedia quando ia à missa”, aos domingos, acompanhado pela esposa Rosa. Em 2021, foi um dos utentes do lar a testar positivo à Covid-19, doença que lhe passou pelo corpo sem grandes sintomas e sem deixar sequelas.
Francisco Filipe nasceu e viveu com os pais e irmãos num moinho, que utilizavam para moer os cereais, actividade que era o sustento da família. Seguindo as pisadas dos seus progenitores, fez-se moleiro aos 11 anos, altura em que deixou a escola primária. Já em idade adulta foi “pau para toda obra” na extinta Junta de Freguesia da Lapa, unificada com a Ereira desde a agregação de freguesias. “Agora já não posso fazer nada”, diz sem grande mágoa, conformado com as limitações da idade.
Ilda Gaspar escuta-o com ternura e ajuda a amplificar a pergunta ao ouvido: “Qual é o segredo para se viver estes anos todos, avôzinho?”. Francisco, atira um “sei lá!”. Depois tenta encontrar uma resposta mais completa para justificar a sua longevidade: “Sempre tive muito juízo e fui bonzinho, gostava de partilhar o que tinha”. À medida que a conversa se vai fazendo calmamente, o único centenário do lar do Centro Social e Paroquial de Aveiras de Cima volta a queixar-se da luz exterior e do calor. “O que vale é que um destes dias vem mais frio. Tem estado um calor abrasador, às vezes até é demais”, remata, antes de Ilda Gaspar o levar para a sala de convívio onde é recebido com entusiasmo pelos utentes que lhe são mais chegados.
A fórmula para a longevidade?
Ultrapassar a faixa etária dos 100 anos continua a ser um mistério para a ciência, com muitas perguntas sem resposta na biologia do envelhecimento. Há estudos que defendem que os centenários podem ser portadores de uma variação genética incomum que amplia o tempo de vida; outros estabelecem uma relação com a capacidade regenerativa do DNA; há também os que argumentam que a fórmula está num estilo de vida regrado, onde predomina a alimentação saudável e a prática de exercício físico; há ainda cientistas que estudam a relação da longevidade com a espiritualidade; e um estudo de 2019, realizado por investigadores da Universidade de Boston, defende que uma atitude positiva perante a vida nos faz viver mais tempo.
Esperança média de vida sofre recessão
A esperança de vida à nascença da população portuguesa recuou, em média, 4,1 meses devido à mortalidade associada à Covid-19. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística, de 2019 a 2021, a esperança de vida foi estimada em 77,6 anos para os homens e em 83,3 anos para as mulheres, o que se traduz numa diminuição de cerca de 4,8 meses para os homens e de 3,6 meses para as mulheres. Em 1970, a esperança média de vida fixava-se nos 67,1 anos e só no ano de 2001 a média atinge pela primeira vez os 80,1 anos. Portugal tem actualmente mais de cinco mil centenários e a previsão é a sua duplicação até 2050.