Sociedade | 17-01-2023 10:00

Idalina Lopes é cega e responsável na Câmara de Abrantes pela leitura em suportes especiais

Idalina Lopes é cega e responsável na Câmara de Abrantes pela leitura em suportes especiais
Idalina Lopes ficou cega anos nove meses devido a uma meningite

Ficou cega com nove meses de idade, numa altura, há meio século, em que as escolas não estavam preparadas para alunos como ela.

Aprendeu Braille e a andar na rua, o que ainda é um risco porque não se pensa nos cegos quando se coloca sinalização ou pilaretes nos passeios. A trabalhar na Câmara de Abrantes desde 1990, onde é responsável pelo Serviço de Leitura em Suportes Especiais, diz que ainda há muito por fazer na aplicação do braille ao dia-a-dia dos cegos.

Idalina Lopes ficou cega aos nove meses devido a uma meningite. “Não me lembro de nada, não me lembro de ver, só tenho a noção do escuro e do claro. Consigo desviar-me das coisas, não sei é que coisas são”, diz a funcionária da Câmara Municipal de Abrantes. No seu tempo de escola as coisas não eram como hoje, onde as crianças cegas são inseridas no ensino oficial. Os pais eram agricultores e pouco conhecimento tinham sobre o seu problema, mas proporcionaram-lhe os meios necessários para que se integrasse na sociedade.
Em conversa com O MIRANTE, a propósito do Dia Mundial do Braille, que se assinalou a 4 de Janeiro, Idalina Lopes conta que foi estudar para Coimbra, num colégio. “Só havia aulas para cegos em Coimbra, Lisboa e Porto”, recorda. Foi onde teve o primeiro contacto com o braille, mas não só: Aprendeu a andar na rua, a fazer coisas do quotidiano como vestir-se, lavar-se, tratar de outras crianças com deficiência visual, entre outras. “Tínhamos tudo desde educação física, orientação e mobilidade, para além de aprendermos a ler e a escrever, sempre através do braille. O braille nunca nos deixou”, conta.
Trabalha na câmara desde 1990, onde é a responsável pelo SELESE - Serviço de Leitura em Suportes Especiais - e colaboradora da Biblioteca Municipal António Botto. As condições para as pessoas cegas melhoraram, mas no entender de Idalina Lopes ainda há muito a fazer quanto à aplicação do sistema braille no dia-a-dia das pessoas cegas. “Ninguém cumpre a lei. Mesmo no acesso aos computadores há muito por fazer”, exemplifica.
“Ou temos uma linha braille ou um sintetizador de voz, que lê aquilo que aparece no ecrã, excepto as fotografias”, diz Idalina elogiando o facto da edição online de O MIRANTE ter legendas das fotografias, o que permite que ouça o que está escrito e fica com uma ideia da imagem. A tecnologia veio trazer uma nova vida ao braille. “O problema do braille era ocupar muito espaço porque o espaço em branco equivale a uma letra, o que com os computadores e telemóveis deixou de ser um problema”, diz-nos.
A maior dificuldade da funcionária da Câmara de Abrantes, com 55 anos, acontece na paragem do autocarro. “Tenho facilidade em me mover, venho e vou para casa todos os dias de transporte, mas se não tenho ninguém ao meu lado que me diga para onde vai o autocarro, nunca sei”, descreve. Outro dos perigos para as pessoas que não vêem são os sinais de trânsito colocados nos passeios e os pilaretes de impedimento de estacionamento. “Muitas vezes a bengala não chega lá. É um perigo”, adverte, contando que uma colega, também invisual, caiu à sua frente, pois desconhecia a presença dos novos pilaretes em Abrantes.
Idalina Lopes costuma ir acompanhada ao supermercado, porque a identificação em braille “não é muito legível nem tem dado os resultados pretendidos”. “Se não vamos com alguém que veja, para nós é muito difícil”, lamenta, considerando que é preciso fazer muito para mudar as coisas. Dá como exemplo o que se passa em Espanha, onde os sinais de trânsito são estrategicamente colocados junto dos edifícios, em vez de estarem à beira dos passeios. Esteve há pouco tempo no país vizinho e diz que a Organização Nacional de Cegos de Espanha tem trabalhado muito bem.

“Não sou invisual, sou cega”
Idalina Lopes não tem qualquer problema com a designação de cega e rejeita o termo invisual. “O que é que é a Associação Portuguesa? É de cegos, não é de invisuais”, diz sem rodeios. “A gente não gosta dessa designação de invisuais. Somos cegos, ponto final”, sublinha rejeitando o termo politicamente correcto. “Quando as minhas colegas escrevem artigos de divulgação de serviços sobre cegos e põem lá ‘invisual’ digo logo à minha chefe: “Corta isso que não quero”.

SELESE faz este ano 33 anos

A Câmara de Abrantes criou o SELESE - Serviço de Leitura em Suportes Especiais - em Julho de 1990, no ano em que Idalina abraçou a sua profissão de bibliotecária. O serviço é uma referência na comunidade de cegos e disponibiliza livros em linguagem braille, audiolivros e livros em formato digital. É gratuito e para se poder usufruir do serviço basta inscrever-se na Biblioteca Municipal António Botto.
“Fazemos intercâmbios com a Biblioteca Nacional, a Biblioteca Camões e com a Biblioteca do Porto. Temos livros gravados em som porque há pessoas que não conseguem ler braille por terem deficiência nas mãos”, descreve Idalina.

Primeira máquina de escrever em Braile trazida por Jorge Sampaio

Idalina Lopes informa que a primeira máquina de escrever em Braile, que entrou em Portugal, foi trazida pelo antigo Presidente da República, Jorge Sampaio. E acrescenta que isso aconteceu porque a mãe do político, falecido em 2021, era professora de cegos. “Na altura não passou na alfândega, houve alguém que teve de pagar para a máquina poder entrar no país”, conta.

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