Cuidar dos familiares idosos é um acto de amor e coragem










Emília Silva abdica de tempo pessoal e do trabalho para cuidar a tempo inteiro de três familiares idosos.
Ajuda-os na higiene, prepara-lhes as refeições, leva-os às consultas e assegura a toma correcta da medicação. Acredita que são mais felizes na sua casa. A ida de idosos para um lar acontece cada vez mais tarde e é preciso o Estado e as instituições adaptarem-se à nova realidade, alertam Sónia Nascimento e Vanda Alvega, directoras na Misericórdia de Alhandra.
Emília Silva começou a perceber a dimensão do problema quando o cheiro a gás e o fogão ligado por esquecimento começaram a ser uma constante na casa dos sogros. “Já não tinham capacidade para estarem sozinhos, então acabei por trazê-los para cá. Não querendo criticar o trabalho feito nos lares assumi essa tarefa para poderem ter mais qualidade de vida. Acredito que são mais felizes assim”. Há três anos abdicou definitivamente do trabalho como desenhadora e já não se lembra do que é viver uma vida sem pensar primeiro na daqueles que cuida: a sogra, de 84 anos, o sogro, de 87, e a prima Rosa Casimiro, de 86. Mas fá-lo “por amor”, mesmo sem saber ao certo se os três idosos “se apercebem da sorte que têm”.
Na casa que se abre para uma vista desafogada sobre a albufeira de Castelo do Bode, em Vale da Laje, no concelho de Tomar, o dia começa antes do sol nascer. Emília ajuda Rosa a retirar o aparelho que usa durante a noite para a apneia do sono. Depois lava-lhe o cabelo. Na cozinha prepara os pequenos-almoços, organiza a medicação guardada em três gavetas e olha para o calendário onde assinala os dias das consultas, dos exames e das análises. Alice, Rosa e José ficam acomodados na sala onde a lareira acesa os conforta e a televisão lhes dá motivo de conversa. “Nesta casa é outro ambiente, não temos frio como na nossa. Já estive num lar depois de ter tido um acidente, mas gosto mais daqui. Com a família é outra coisa”, atira José. A mulher com quem casou há 63 anos corrobora, até porque, desde que está na casa do filho e da nora nunca mais teve desequilíbrios ou caiu no chão desmaiada por “baralhar a medicação”.
José Ferreira não gosta de se acomodar ao sofá nem à velhice. Quase todos os dias, depois do pequeno-almoço, desce com a esposa até à casa onde moravam para cuidar da horta e das abelhas. A facilidade com que rega as couves e as alfaces já não é a mesma, mas faz questão de continuar mesmo que tenha de ficar sentado numa cadeira enquanto guia a mangueira da rega. “É o lembrar dos tempos antigos” ao mesmo tempo que vai mantendo alguma autonomia. O que num lar, acredita Emília Silva, não seria possível dessa forma: “São pessoas habituadas a trabalhar e a estar no campo e aqui é como se quase estivessem na sua casa, onde vão com regularidade”, diz, anunciando que acredita que “se uma pessoa se sentir activa dura mais anos”.
“Acabamos por nos anular e pensar primeiro nos outros”
Aos 60 anos e com o marido a passar por um problema de saúde que também exige o seu cuidado Emília Silva não é de ilusões. “Cuido e vou cuidar deles enquanto puder, mas tenho noção que se ficarem um dia acamados deixo de ter capacidade para o fazer”. As dificuldades que sente não são novas mas vão ficando mais pesadas com o passar do tempo e da idade. Nota-se mais cansada e nem sempre tem a paciência que gostaria para aceder aos pedidos e escutar as narrativas repetidas de momentos vividos. “Ouvir a mesma história um ano, depois dois e três é muito cansativo. A minha sogra fá-lo muito e não é por mal, eu sei... às vezes até lhe peço desculpa”.
O maior desafio de um cuidador - que no caso de Emília Silva não é estatuto reconhecido por não estar inscrita no centro de emprego, uma vez que continua a ajudar o marido na empresa familiar de construção civil - é conseguir fazer o que precisa ou o que lhe apetece dentro de uma rotina apertada de afazeres para a pessoa cuidada. Praticar ginástica, natação, fazer uma caminhada ou ir de férias são pequenos prazeres que Emília não consegue pôr em prática tantas vezes quantas gostaria. “Acabamos por nos anular e pensar primeiro nos outros. Com o passar do tempo vamos ficando de lado”, afirma, salientando que ir mantendo algumas dessas actividades é fundamental para a sua saúde física e mental.
Institucionalização acontece cada vez mais tarde
A directora técnica da Associação do Hospital Civil e Misericórdia de Alhandra, Sónia Nascimento, fala numa tendência de “retardar a institucionalização” em lar para que os idosos possam permanecer mais tempo nas suas casas cuidados por familiares. Alerta, por isso, que é fundamental cuidar de quem cuida pelo desgaste que a função acarreta. “O que verificamos é que se chega a um ponto em que os dois idosos – o cuidador e a pessoa cuidada - precisam de ir para ERPI (Estrutura Residencial para Pessoas Idosas). “Dar banho, ajudar a andar, ouvir o mesmo discurso várias vezes ao dia, ter perturbações do sono porque não se consegue dormir descansado, tudo isso afecta a qualidade de vida do cuidador”, além de que, sublinha, nos casos de demência é “chocante não ser reconhecido” pelo cônjuge ou familiar.
Para Vanda Alvega, directora de serviço na mesma instituição, é uma novidade haver lista de espera em Serviço de Apoio Domiciliário (SAD), o mais pedido a par com o centro de dia, para atrasar a institucionalização em lar. “Há uma grande vontade que o apoio domiciliário seja a resposta que prevaleça, mas nem sempre é possível quando não há família directa porque os cuidados do SAD não são suficientes”, explica, ressalvando que o SAD começa a ter respostas mais alargadas que não se cingem a fazer uma higiene diária. Pode haver higiene do idoso mais do que uma vez por dia, entrega de refeições, limpeza do domicílio e companhia para afastar a solidão posta em prática com o projecto da instituição “Telefone Solidário” através do qual também é feito um levantamento das necessidades do idoso.
Mas num país onde é cada vez mais raro os filhos terem tempo, meios e até morarem perto dos pais idosos, Vanda Alvega alude para a necessidade de os SAD evoluírem e prestarem mais serviço e até mais tarde. “A partir das 16h00 não fazemos serviço porque não temos colaboradores. É uma resposta que, alargada, sai muito cara e não é coberta pelo Estado. “Se o idoso tiver em sua casa acesso a cuidados de higiene, alimentação, serviço de enfermagem, psicologia e alguém que converse com ele durante algumas horas é o ideal mas não podem ser as instituições sozinhas a dar esse passo por mais que se queira”, diz.
Vanda Alvega revela que há dois casos em que os cuidadores de idosos em SAD pedem apoio para descanso que é assegurado pela instituição, onde a média de idades dos idosos que entram em lar é de 80 anos e a lista de espera é densa e com cerca de 15 novos pedidos todos os meses.