Tribunal de VFX com poucos funcionários e más condições

A falta de funcionários e o mau estado do edificado são as maiores dores de cabeça da juiz-presidente da Comarca de Lisboa Norte, onde se insere o Tribunal de Vila Franca de Xira.
Na sua primeira entrevista a O MIRANTE, Anabela Rocha fala de como é ser mulher e mãe num cargo de liderança, da velocidade da justiça e do futuro tribunal da cidade que tarda em sair do papel. É a favor da reorganização do mapa judiciário e lamenta que a sociedade ainda sofra de iliteracia judicial.
A Comarca de Lisboa Norte, onde se inclui o Tribunal de Vila Franca de Xira, está numa situação de pré-ruptura e a situação é “muito complicada”, admite a juiz presidente da comarca, Anabela Rocha. No quadro de funcionários da carreira judicial, dos 258 trabalhadores que deveriam estar ao serviço estão 216 e no que toca ao Ministério Público, num quadro de 99 apenas 65 pessoas estão em funções. Em entrevista a O MIRANTE, a responsável admite que a situação, a continuar, vai tornar-se insustentável.
“Além destes números, que não dizem tudo, temos funcionários mais velhos ao serviço porque não tem havido concursos. Temos funcionários desgastados, a acusar as doenças próprias de uma idade mais avançada e sente-se algum desalento. É o retrato do país”, alerta. Anabela Rocha reconhece que só o facto dos funcionários trabalharem para além dos seus limites vai permitindo manter o tribunal a dar resposta à comunidade.
“Não me parece justo que isto se mantenha por muito mais tempo. O sistema vive hoje destas pessoas e do seu trabalho, da sua resiliência e brio profissional. Mas um dia a casa cai. Isto não vai durar sempre. Se as pessoas se reformam e não entra gente nova o número de funcionários diminui”, diz. No arranque do novo ano judicial o sindicato dos funcionários judiciais anunciou greves e a juiz presidente, não querendo tomar o papel de sindicalista, admite estar solidária com os funcionários.
Novo tribunal é uma urgência
O edificado, a par com a falta de funcionários, é a maior dor de cabeça para a juiz. O Tribunal de Vila Franca de Xira, construído em 1964, é velho e já não reúne condições para os trabalhadores, juízes e utentes, funcionando em quatro edifícios diferentes e três contentores no palácio da justiça. As más condições são também sentidas no Tribunal do Trabalho, onde o cheiro a esgotos e a bolor, a par com a falta de luz natural, está a desgastar quem ali presta serviço.
“Os contentores foram colocados em 2010 de forma transitória mas perpetuou-se e funcionam lá duas salas de audiências e a secção central. Chamar desumano a estas condições é uma palavra forte. É indigno. Nem para quem lá trabalha nem para quem recorre aos serviços de justiça. Isto tem de ser dito”, refere a juíz. Também o funcionamento de um balcão de atendimento no vão da escada do palácio da justiça é motivo de reparo. “É indigno. As pessoas têm o direito a ter espaços adequados”, condena. A construção do novo tribunal, diz, é uma urgência “de pulseira vermelha” que tem de avançar rapidamente.
O novo tribunal, a ser construído na antiga Escola da Armada, tem estado em banho-maria desde 2017, altura em que foi celebrado o protocolo entre o município e o Ministério da Justiça. Ficar longe da cidade não é um problema para a magistrada. Considera que o tribunal será uma âncora para promover o desenvolvimento da cidade, mantendo-se em funcionamento o palácio da justiça com a jurisdição criminal.
Há três meses o secretário de Estado adjunto da Justiça visitou o tribunal e as suas palavras deixaram Anabela Rocha animada. “Caracterizou os contentores como linhas vermelhas inultrapassáveis e senti que ficou chocado com o que viu, pelo que as palavras dele deixaram-me animada”, nota.
Apesar da falta de condições Vila Franca de Xira foi conseguindo dar resposta a vários mega-julgamentos nos últimos anos, incluindo os casos Conforlimpa, Rosa Grilo e Legionella. “Não ficámos mal vistos com a forma como tudo correu. Mostrámos a quem presta atenção que fazemos o nosso trabalho. Estivemos à altura e as coisas fizeram-se sem sobressaltos”, afirma.
A juíza do caso Galpgate
Anabela Rocha é de Lisboa mas vive na região e tem três filhos. Pessoa reservada, admite ser leitora de O MIRANTE e conhecer o trabalho do jornal na região. Em criança queria ser escritora mas aos 16 anos decidiu ser juiz e estudou Direito com esse fim. “Achei que me revia neste papel de decidir, ponderar, aplicar a lei e romanticamente ajudar a tornar o mundo um pouco melhor”, confessa.
Ser juiz é mais difícil do que parece, admite. Apesar de estar como juíz de instrução foi como juiz do Tribunal de Família que mais se reviu. Esteve nesse papel em Vila Franca de Xira durante 14 anos e admite terem-lhe passado casos complicados pelas mãos. “Não há nada emocionalmente mais difícil do que ser mãe. Consigo desligar-me do trabalho quando chego a casa porque encontrei situações muito difíceis. O ser humano no seu pior e no seu melhor”, recorda.
Enquanto juiz de instrução Anabela Rocha foi notícia em Julho de 2020 quando colocou em prisão domiciliária seis membros da claque benfiquista No Name Boys no âmbito da operação Sem Rosto. E em Outubro de 2019 foi favorável à suspensão do procedimento criminal relativo a todos os arguidos do caso Galpgate, em que se investigou a oferta feita por gestores da Galp de bilhetes e viagens para membros do governo assistirem aos jogos do Euro 2016. A suspensão pressupôs o pagamento de uma multa agravada, também conhecida como injunção.
“A justiça não pode ser precipitada”
A justiça tem de ser lenta para permitir uma boa ponderação das decisões? A sociedade não tem de entender a velocidade da justiça porque não temos uma opinião pública devidamente esclarecida. A justiça não pode ser precipitada. Há o tempo de ponderar e permitir às pessoas defenderem-se. Há sempre mais para saber. Eu percebo que para as pessoas o tempo da justiça é lento e que quem se dirige à justiça queira o assunto resolvido no dia, mas isso não é possível nem desejável. Muitas vezes só chegam à praça pública os casos que correm mal. Por cada processo mediático que demora dez anos a decidir há todo um mundo de processos que correm bem. A justiça tem o seu tempo mas em termos da resolução processual não é lenta.
Tomou posse a 24 de Março de 2021. O que quer mudar na comarca? Espero deixar uma comarca arrumada, as pendências (processos por julgar) a descer e um novo palácio da justiça, ainda que não dependa de mim. Mas deixava-me muito feliz ver isso acontecer. Candidatei-me a este cargo porque gostava de fazer uma coisa diferente. Os juízes não gostam que se mande neles, não está no seu ADN. Somos independentes por natureza. Quero que as pessoas sejam bem atendidas, em espaços acolhedores e adequados e abrirmo-nos e interagirmos com a comunidade, por exemplo, trazendo as escolas para os tribunais e assistir a julgamentos.
Para ajudar a quebrar a imagem com que a maioria das pessoas fica quando entra numa sala de audiências? Isso revela iliteracia judicial. As pessoas têm muito respeito pelo tribunal mas percebe-se que têm algum temor e conhecem pouco. Assim perde-se a noção que estamos aqui para servir as pessoas. O ambiente austero da sala de audiências faz parte, mas temos de tentar desconstruir essa imagem.
Concorda com a reforma do mapa judiciário? Foi uma mais-valia. Trouxe-nos a especialização e a proximidade do órgão de gestão. As entropias são conhecidas e podemos actuar mais rapidamente. A justiça e a população ganharam com essa reforma. Mas não há bela sem senão. As pessoas deslocarem-se para Loures para os grandes julgamentos cíveis, criminais e para a instrução é um problema. Mas se pesarmos tudo é o preço a pagar pelas outras vantagens.
Como é ser mulher na liderança de uma comarca? Nunca senti discriminação nem fui olhada de lado. Percebo que possa ser um exemplo para as gerações mais novas, mas para as minhas filhas e o meu filho não é estranho. É absolutamente natural. O tempo vai acabar por quebrar esses tabus entre homens e mulheres. Ainda não somos um país onde possamos dizer que estamos equilibrados no que diz respeito aos direitos das mulheres e isso vê-se na média dos vencimentos e nos papéis tradicionais que ainda são muito assumidos pela mulher, como o papel de mãe e dona de casa. Mas está-se a esbater cada vez mais.
As mulheres têm outra sensibilidade para resolver problemas? Sou muito consensual e evito o conflito. Procuro resolver as coisas com delicadeza sem evitar as chatices quando tem de ser e consigo conciliar o trabalho com a vida familiar. Fui para a magistratura em 1993 e tive a minha primeira filha em 1994. Não fiz mais nada senão ser mãe, juiz e esposa ao mesmo tempo. Não foi fácil. Equilibrei muitas bolas mas estou habituada e continuo a fazer isso. Faço questão de ser a melhor profissional e mãe que consigo. Não sou perfeita mas tento.