Vítimas de violência doméstica nem sempre têm apoio familiar para deixar o agressor
O Espaço M, a funcionar em Torres Novas para atender e apoiar vítimas de violência doméstica, foi muito importante para dar resposta a quem antes tinha medo de pedir ajuda.
Zélia Espadinha e Sandra Lobo, dois rostos deste espaço, admitem que há um longo caminho a percorrer no combate a esta problemática ainda muito associada à desigualdade de género. Dizem que parte das vítimas regressa para os braços do agressor na esperança que este mude comportamentos, o que, alertam, não acontece.
Em jeito de conclusão, desde que entrou em funcionamento o Espaço M em Torres Novas no ano de 2020, a técnica de apoio à vítima na área do Direito, Sandra Lobo, refere que “as vítimas de violência doméstica nem sempre têm o apoio da família para deixarem o agressor” e que não são raras as vezes em que, no momento dessa decisão, “estão completamente sozinhas”, desamparadas e com receio do futuro. “São tomadas de decisão muito solitárias. Tivemos uma mãe que veio com a filha, vítima de violência doméstica, e nos disse que se ela levou tanta porrada na vida porque é que a filha não podia aguentar”, conta, lamentando que a violência doméstica continue a não ser olhada por toda a sociedade como um crime que tem de ser travado.
Por este relato se percebe que a conversa com O MIRANTE, na qual também participa a vereadora na Câmara de Torres Novas e ex-presidente da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ), Elvira Sequeira, não será distinta de muitas outras acerca deste fenómeno que, em 2022, tirou a vida a 24 mulheres e quatro crianças. Este ano Sandra Lobo estima que os pedidos de ajuda vão disparar em Torres Novas, tendo em conta que a CPCJ local já ultrapassou a centena de casos em que a “problemática mais sinalizada é a da violência doméstica entre os pais”.
Este crime, adverte a coordenadora do Espaço M, Zélia Espadinha, é transversal a toda a sociedade podendo acontecer na casa de casa um, independentemente “do estrato social” a que a família pertence. Continua a ser também, embora menos, um crime continuado mas que fica guardado em segredo dentro das quatro paredes de uma casa. Nos momentos em que passa pela cabeça da vítima dizer ‘basta’ pesam muitas vezes os filhos, a vergonha, a dependência financeira e a emocional. E é por este último motivo que “a grande maioria das vítimas acaba por voltar para o agressor” mesmo estando já instaladas em casas abrigo, alerta Sandra Lobo, sublinhando que actualmente a questão financeira já não pesa tanto na balança.
Quando o processo de ajuda volta à estaca zero, na equipa do Espaço M fica uma “sensação de impotência”, não porque não tenham feito bem o seu trabalho mas porque por vezes os motivos que levaram uma vítima a voltar para o agressor dependem de factores externos. “A problemática da violência doméstica é muito complexa. Temos uma legislação espectacular, mas na prática as coisas não funcionam como deviam o que, por vezes, desanima a vítima. Por exemplo, é raro o tribunal proibir um agressor de ver os filhos” refere a técnica e jurista, explicando que nos casos em que há dependência emocional a vítima pensa que se assim é “mais vale estarem todos juntos”.
Violência começa muitas vezes no namoro
O número de pedidos de apoio no Espaço M aumentou desde que o serviço entrou em funcionamento. No primeiro ano foram atendidas 11 pessoas, no ano seguinte 21, em 2022 foram 34 e nove no primeiro trimestre de 2023, num total de 75 vítimas (quatro são homens), que são apenas a ponta de um iceberg. Ainda faz falta, sublinham, envolver mais a sociedade neste fenómeno e, sobretudo, fazer uma intervenção precoce junto dos mais novos sobre a violência doméstica e também sobre a igualdade de género. “Tem que acabar a história de que o menino e menina têm diferentes papéis na sociedade”, reforça Sandra Lobo, numa alusão para o facto de a maior parte das vítimas serem mulheres. “Há um ciclo da violência que começa na chamada fase do namoro onde depois de um episódio o agressor fica querido e sedutor. O problema é que depois volta tudo ao mesmo e a escalar. Quase todas as pessoas que nos aparecem na estrutura foram vítimas de violência no namoro. Os sinais estão todos lá e a maior parte notou-os mas optou por ignorá-los porque a vítima está sempre à espera que o agressor vá modificar-se, mas isso não acontece”, destaca Sandra Lobo, apelando para que não se ignorem as bandeiras vermelhas e não se continue a investir numa relação abusiva.
Embora não trabalhe com os agressores, a técnica de apoio à vítima não tem dúvidas: “muitos dos agressores tiveram vidas problemáticas”, podendo até ter sido vítimas de violência doméstica, fosse psicológica, física ou sexual, o que faz com que haja um padrão de comportamento que geralmente não se altera nem quando são colocados em “programas de gestão de raiva”.
Neste campo, defendem, precisam ser aumentadas as respostas e o acompanhamento tem de ser mais regular. “Alguns já estiveram detidos e quando saem vão concretizar o crime porque vivem obcecados. Muitas das mulheres que acabaram mortas já não estavam numa relação com os agressores. Não podemos estar nós a trabalhar de um lado e os agressores serem largados sem acompanhamento”, conclui.
Espaço M com atendimento gratuito e personalizado
O Espaço M surgiu no âmbito do Projeto Maria, da Comunidade Intermunicipal do Médio Tejo, e encontra-se em funcionamento no Convento do Carmo, em Torres Novas. O atendimento é feito de forma personalizada e é realizado um diagnóstico de modo que as vítimas tenham asseguradas condições essenciais face ao perigo a que podem estar sujeitas. Podem ser feitos encaminhamentos para casas-abrigo e/ou para acompanhamento psicológico e ser accionado um pedido de protecção jurídica com atribuição de advogado. Todos os serviços são gratuitos. O Espaço M de Torres Novas funciona de segunda a sexta-feira no serviço de Acção Social e através do 249 810 790.