O universo especial do autismo ainda gera preconceito e incompreensão
O autismo afecta entre 1 a 2% de crianças e nem sempre é de fácil diagnóstico. Neste testemunho a O MIRANTE, a propósito do Dia Mundial para a Consciencialização do Autismo, pais de três crianças autistas partilham os primeiros sinais de alerta, as dificuldades até ao diagnóstico e a incompreensão da sociedade que esperam que seja um dia mais empática e inclusiva.
As gémeas Lara e Diana começaram a ter interesses muito específicos. A primeira adora folhear livros, a segunda tem um interesse desmedido por peças de lego e por juntar objectos iguais. Não encaram as pessoas olhos nos olhos e socializar com adultos ou outras crianças não lhes desperta qualquer interesse. Têm quase cinco anos e não falam, mas até se chegar ao diagnóstico os comportamentos, que não passaram despercebidos aos pais, foram sendo desvalorizados em consultas por causa do nascimento prematuro. Os médicos pediam-lhes “calma”, a família dizia-lhes que “era uma fase que ia passar”. Mas não passou e não há mal nenhum nisso. “São crianças como as outras mas que precisam de mais amor, paciência e compreensão”, refere a mãe das gémeas, Isabel Francisco.
O diagnóstico acabou por ser feito para as duas na mesma consulta, embora Isabel e Filipe Oliveira tivessem esperança que apenas Diana, a que lhes parecia que apresentava mais sinais de alerta, fosse diagnosticada com autismo. “Nunca nos olhou nos olhos, ficava frustrada com facilidade e tinha aquela fixação por objectos iguais. Tínhamos 99% de certeza do que íamos ouvir da parte da Diana, mas da Lara tínhamos esperança”. Aos olhos do médico as vocalizações de Lara, depois de ter deixado de falar, o desequilíbrio e o andar em bicos de pés eram sinais evidentes.
O autismo é um espectro da neurodiversidade, uma dificuldade na socialização e na comunicação. Não é, em si, uma doença mental. Embora as pessoas com espectro do autismo possam ser “mais vulneráveis ao desenvolvimento de problemas ao nível da saúde mental devido ao sofrimento causado pelos conflitos sociais, incompreensão, discriminação e outros factores”, lê-se na página da Federação Portuguesa de Autismo, onde se destaca que algumas “têm capacidades intelectuais normais ou acima da média”. E como “não existe um marcador biológico específico para identificar o autismo” o diagnóstico é, nalguns casos, difícil, tardio até, por ser feito através de comportamentos clinicamente observáveis.
“Parecia que eu era a mãe maluca que queria à força um filho autista”
Foi também com base na observação dos comportamentos do filho que Nádia Sebastião, natural de Samora Correia, foi, aos poucos, juntando as peças que a fizeram desconfiar que o pequeno Lucas poderia ter condição do espectro do autismo. “Até aos seis meses foi um bebé tranquilo. Depois começou a fazer as suas gracinhas e a dizer algumas palavras, mas houve um dia em que acordou e parecia que tinha apagado a memória e as aprendizagens: já não dizia mamã, papá, não pedia água, deixou de olhar nos olhos e começou a ter comportamentos estranhos como olhar para os tectos da casa, ver sempre os mesmos desenhos animados ou abanar muito os braços como se quisesse levantar voo”.
Nádia Sebastião partilhou com a família as suas desconfianças. Uns insistiam que Lucas tinha problemas auditivos, outros que a mãe “estava a ver coisas onde não existiam”. Após passar vários dias a observá-lo atentamente e depois de uma rápida pesquisa na Internet, que veio reforçar as suas suspeitas, procurou ajuda médica especializada e, chegado o diagnóstico, Lucas começou a fazer terapia. “Ainda me custa lidar com a regressão dele, mas fui a primeira pessoa a aceitar que o meu filho tinha autismo e a querer ajudá-lo”. Do lado da família, o apoio, confessa, não foi o esperado, talvez por desconhecimento. “Foi duro porque parecia que eu era a mãe maluca que queria à força um filho autista”.
O autismo, alerta a Federação, expressa-se de diferentes formas e a personalidade, assim como as necessidades da pessoa com autismo, devem ser observadas individualmente e não com base num rótulo. São por isso importantes, quando se trata de crianças, as observações feitas pelos pais que podem ser transmitidas aos profissionais de saúde, salienta a mãe das gémeas residentes na Romeira, concelho de Santarém. As dificuldades nas relações sociais, de comunicação e os comportamentos e interesses repetitivos ou restritos são alguns sinais de alerta, embora nalguns casos sejam discretos sobretudo no sexo feminino cujo diagnóstico é por norma mais tardio.
“Quando ouvem a palavra autista quase que fogem como se fosse uma doença que se pega”
Quando usam a palavra autismo para justificar determinado comportamento das filhas Isabel e Filipe sentem que algumas pessoas se afastam imediatamente. “Quando ouvem a palavra autista quase que fogem, como se fosse uma doença que se pega. Normalmente conseguimos ignorar esses julgamentos que às vezes não são verbais mas através de gestos como o abanar a cabeça. Outras vezes dói muito”, lamenta Isabel. “Talvez pensem que por elas não responderem que é falta de educação ou que estão num dia ‘não’”, atira o pai das gémeas, ironizando que se assim fosse “estariam sempre num dia não”.
Os olhares depreciativos também afectam Nádia Sebastião que lamenta que as pessoas julguem o comportamento de uma criança com dois anos só porque não as olha ou não responde ao cumprimento. Para esta mãe, cada interacção do filho, por mais insignificante que possa parecer aos olhos da sociedade em geral, é encarada com a felicidade de uma grande vitória. “Digo-lhe sempre que tenho muito orgulho nele”. Lucas frequenta uma creche em Salvaterra de Magos, onde vive. As gémeas estão numa turma mais reduzida e têm duas assistentes e uma educadora de ensino especial - o que só é possível porque estão diagnosticadas - e as suas vitórias são comemoradas pela comunidade escolar, conta a mãe que elogia a resposta inclusiva do estabelecimento de ensino.
“A vida vive-se melhor se não se pensar demasiado no futuro”
Nádia, Isabel e Filipe consideram urgente uma mudança que facilite diagnósticos, que seja mais inclusiva, empática e na qual sejam equacionados mais apoios e acesso a terapias através do Sistema Nacional de Saúde, que consideram ser de qualidade mas insuficientes. Nádia, apesar de ter “aprendido a ser uma mãe mais calma” por causa do autismo, não esconde “o medo do amanhã, de quando não puder estar por perto”. Filipe e Isabel contam que aprenderam com o autismo das filhas, mas já antes com as dificuldades de uma gravidez complicada e primeiros meses de vida das gémeas prematuras, que “a vida vive-se melhor se não se pensar demasiado no futuro”.