Sociedade | 10-05-2023 15:00

Na região ainda há quem dê vida a profissões que já ninguém quer

Na região ainda há quem dê vida a profissões que já ninguém quer
José Miguel Figueiredo mantém a funcionar a última olaria de Asseiceira onde molda peças únicas com a ponta dos dedos

Há profissões que estão a desaparecer, algumas com forte tradição na região ribatejana.

A propósito do Dia do Trabalhador O MIRANTE juntou um oleiro de Tomar e um cesteiro de Salvaterra de Magos que trabalham em ofícios seculares que deixaram há muito de atrair novos interessados. José Miguel Figueiredo e António Vidigal são a memória viva de um outro Ribatejo trabalhador.

Os livros nunca lhe despertaram grande interesse, já o trabalho com o barro cativou-o desde cedo. A escolha tomada há mais de quatro décadas não agradou à família de oleiros, mas José Miguel Figueiredo tomou-a “contra a vontade de toda a gente”. Aos 12 anos saiu da escola e aos 13 fez a sua primeira talha de barro na antiga olaria do pai. Nessa altura, em Asseiceira, freguesia do concelho de Tomar, olarias e cerâmicas era o que não faltava, fossem de maior dimensão ou improvisadas numa pequena divisão de uma qualquer casa de família. Todas se perderam. Hoje, José Miguel Figueiredo é o único talheiro no activo e proprietário da Casa das Talhas, a única olaria em funcionamento na terra do barro vermelho.
No interior do edifício centenário onde nos recebe, o tom avermelhado dos imponentes potes alinhados confunde-se com as tonalidades do chão que pisamos e que foi, com o passar dos anos, assumindo as cores do barro. A dimensão do espaço comprova como noutros tempos foram muitas as mãos a moldar e a levar a cozer os potes, os púcaros para a resina, as talhas, os talhões e a loiça de uso doméstico. “Cheguei a ter 10 pessoas aqui a trabalhar, mas a China inundou o mundo inteiro”, afirma. Ao fundo passa, num andar quase impercetível entre um aglomerado de tijolos burro perfilados, o único funcionário que o acompanha nas lides.
“Aqui fazemos tudo. Vou colher o barro e preparo-o nas máquinas até ao produto final, que são as talhas cozidas. Ainda ontem cozi e saí daqui eram 23h30”, conta o talheiro de 52 anos, pai de dois filhos que escolheram não lhe seguir as pisadas. “Na família Figueiredo todos eram ligados ao barro, mas nos últimos 50 anos as coisas foram-se perdendo. Daqui a uns tempos possivelmente acaba”, diz, sem esconder a tristeza que o invade, o especialista no fabrico de potes de barro que aprendeu o ofício com o seu pai, Américo de Oliveira Figueiredo, que, por sua vez, já o tinha aprendido com o seu avô Guilherme de Oliveira Figueiredo.
A conversa passa para junto do forno a lenha à medida que José Miguel vai explicando o processo de fabrico: “O barro está cerca de um ano a fazer a sua própria cura. Depois leva água e passa num processo de três a quatro máquinas até ficar pronto para o trabalharmos. A partir daí é pegar nele e é só mãos, não há mais máquina nenhuma”. Um pote de barro com pouco mais de um metro de altura demora cerca de um mês. “Porque é feito por fases, enquanto uma seca faz-se a outra”, elucida mais à frente depois de pegar num pedaço de barro e começar a dar-lhe forma em cima de um pequeno banco de madeira. Os rápidos gestos das mãos são difíceis de acompanhar enquanto o seu corpo dá voltas e voltas em torno do banco. “É um trabalho duro, mas as pessoas valorizam o que faço por ser manual”, atira enquanto revela a cinta elástica que leva posta à volta da cintura para lhe proteger a coluna.
“As pessoas têm que ter gosto nesta arte e em todas as artes. Se não se gostar daquilo que faz nunca consegue ser um bom profissional seja em que área for”. E na arte da olaria “já sabem que têm que andar sujas, mas as pessoas não gostam disso, querem trabalhos mais limpos, mais simples”. O relato serve-lhe para vincar que é um apaixonado pela profissão que escolheu, mas também para justificar a falta de interessados no ofício. Depois atira que na actualidade a esmagadora maioria opta por profissões de prestígio que exigem uma passagem pelo ensino superior. “Ninguém tem que ser mais que ninguém, estamos todos ao mesmo nível. Essa mentalidade tem que ser combatida”, afirma numa tentativa de defender as profissões que, como a sua, parecem tender para a extinção.
O que não se extingue, garante são os pedidos de peças que recebe, sobretudo de talhas pesgadas utilizadas para fazer vinho, um método que remonta ao tempo dos romanos e que tem vindo a despertar cada vez mais interesse nos produtores. “Não vendo mais porque não tenho, há muita procura. Muitas vezes recuso trabalho porque a gente não consegue fazer mais. Tem que ser com tempo, as mãos não chegam para tudo”, remata.

António Vidigal aprendeu com o pai a arte de entrelaçar o vim

O cesteiro que aos 75 anos não troca o vime por uma conversa de café

À sombra no quintal, sentado numa cadeira, António Vidigal vai entrelaçando o vime para construir uma cesta. Antes, já as varas de vimeiro estiveram mergulhadas num tanque de água durante uma hora. É um truque para não partirem. O fundo das cestas é o mais difícil de fazer, sobretudo quando são redondos, o que obriga a que tenha que pôr o vime debaixo dos pés e dobrado para baixo, explica o cesteiro de 75 anos, que não troca o ofício por uma conversa de café. “Quando lá vou não me demoro. Prefiro ficar em casa a fazer cestas que adoro”, conta.
Natural do Granho, concelho de Salvaterra de Magos, António Vidigal é um dos últimos cesteiros da região e lamenta não haver quem queira aprender a arte que lhe foi ensinada pelo seu pai. O antigo camionista de longo curso, que viajou por vários países da Europa durante 35 anos a transportar automóveis, começou a trabalhar no campo, na Casa Cadaval, em Muge, aos 12 anos, depois de terminar a quarta classe. Entre nove irmãos foi o único da família a aprender a fazer cestas com o vime que o pai apanhava das árvores. “Agora já não se apanha”, vem directamente do Chile, porque como muitas das árvores já não são podadas “o vime já não cresce”.
António Vidigal recorda os tempos em que se sentava ao lado do pai para aprender a arte que começou por ser uma brincadeira mas virou a paixão de uma vida. Serviu também para ajudar no sustento da casa, sobretudo depois de, aos 17 anos, perder a sua mãe, que faleceu durante o parto do décimo filho, que também não sobreviveu. Nessa altura, conta, sonhava ter uma bicicleta para se poder deslocar para o trabalho, mas não havia dinheiro para a comprar. “Nessa altura vinham umas mulheres da Beira Baixa trabalhar para os campos da Casa Cadaval e que ficaram encantadas com as cestas que eu fazia. Fiz tantas e compraram-nas todas. Foi de tal maneira que consegui o dinheiro para comprar a bicicleta e ainda sobrou”, conta, revelando que este sucesso de vendas o incentivou a “trabalhar mais afincadamente” na arte.
Durante o Mês da Enguia, que decorreu em Março em Salvaterra de Magos, o município contratou-o para dar a conhecer a sua arte aos visitantes. Esta semana esteve na Festa do Vinho do Cartaxo a fazer trabalhos em vime. Já na Feira dos Santos, que se realizou em Novembro, na mesma cidade, António Vidigal vendeu todas as cestas que fez. “As cestas de vime voltaram a estar na moda. É uma pena ninguém querer aprender porque as pessoas voltaram a comprar. Há muita gente que está a recuperar bicicletas antigas, as chamadas pasteleiras, e pedem aqueles cestos, que se colocam um de cada lado das bicicletas e também de motorizadas para irem a encontros”, realça o cesteiro que não encontrou na família quem quisesse seguir-lhe as pisadas e que teme que, mais ano menos ano, a arte se perca.

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