O trágico acidente ferroviário da Póvoa de Santa Iria pelas memórias de quem socorreu
A tragédia faz 37 anos e para os que a viveram será para sempre um pesadelo. Samuel Matias era um jovem aspirante a bombeiro quando foi chamado para socorrer num cenário dantesco. O MIRANTE acompanhou-o às memórias de um dia difícil mas que o fez ter a certeza de que iria ser, para toda a vida, bombeiro voluntário.
A chamada caiu na central dos Bombeiros Voluntários de Castanheira do Ribatejo. Em condições normais Samuel Matias, um aspirante a bombeiro de 15 anos, não teria saído do quartel mas a mensagem, naquele 5 de Maio de 1986, foi clara: “Venham com todos os que puderem. É um acidente grave. Dois comboios bateram de frente na Póvoa de Santa Iria. Há muitos feridos”. Vestiu apressadamente a farda, da qual não fazia parte um capacete, luvas ou calçado apropriado e obedeceu à ordem.
Trinta e sete anos depois Samuel Matias, bombeiro voluntário que recebeu há dias o crachá de ouro no 47º aniversário daquela associação humanitária, volta às memórias de uma tragédia que preferia não lembrar. “Saí do quartel sem noção do que ia encontrar. Quando lá cheguei fiquei hipnotizado a olhar para os comboios, um em cima do outro, e as pessoas feridas penduradas nos escombros”. Ouvia os gritos desesperados vindos das carruagens dos comboios. Um rápido que tinha saído da Covilhã em direcção a Lisboa e um suburbano que tinha partido de Azambuja igualmente com destino à capital. Havia pessoas encarceradas, gravemente feridas, algumas mutiladas, e o mais difícil era conseguir decidir quem se socorria primeiro.
“Vou acudir primeiro o que está com sangue na cabeça ou o que grita por ajuda”, lembra-se de ter pensado. Enquanto mais corporações de bombeiros iam chegando, as que estavam no local faziam o que conseguiam. “Sem equipamentos de protecção adequados nem material de desencarceramento”, porque, recorda, não existia na altura na maioria das corporações. Havia civis a ajudar no socorro, inclusive trabalhadores de empresas da zona que foram mobilizados para o local com ferramentas que pudessem servir para o desencarceramento. “Cortavam-se ferros com serrotes e atavam-se cordas para se tentar ir buscar pessoas feridas que estavam nas carruagens. Foi um acidente como nunca tinha acontecido e para o qual os bombeiros não tinham formação. Gerou-se um pânico tão grande que só quem passou por aquilo sabe o que custa lembrar”, afirma, sublinhando a importância dos simulacros realizados actualmente para este tipo de desastres.
“Não havia tempo para dizer que se estava a perder as forças”
A inesperada primeira missão de Samuel Matias, que tinha entrado para a fanfarra ainda sem certezas se queria ser bombeiro, começou perto das 13h00, quase uma hora após o embate que vitimou 17 pessoas e fez 83 feridos. “Aquelas pessoas viam-me como um bombeiro, porque eu levava a roupa de um bombeiro e pediam-me que as ajudasse”. Foi o que fez. Não sabe ao certo quantos feridos retirou das carruagens e ajudou a transportar para as ambulâncias, mas não saiu da estação da Póvoa antes de anoitecer. Lembra-se de ver de relance o então Presidente da República, Mário Soares, e os flashes das máquinas fotográficas dos jornalistas, mas nunca parou. “Não havia tempo nem para dizer que tinha fome, sede ou que estava a perder as forças. O nosso foco era salvar o maior número de pessoas”. O último ferido foi retirado do local às 21h00.
Já no quartel, Samuel Matias lavou do corpo o sangue das vítimas que tinha ajudado a socorrer e juntou-se à conversa do grupo. “Naquela noite achava-me um herói”. A desgraça só começou a mexer no dia seguinte. “Comecei a tremer de medo, a pensar nas pessoas feridas que ajudei e que não sabia se iam perder um braço, uma perna ou se iam sequer sobreviver”. Dos 17 mortos, 11 morreram ainda dentro dos comboios e dois perderam a vida enquanto estavam à espera de embarcar devido à queda de um telheiro. Os restantes cinco faleceram nos hospitais. A maioria sobreviveu, mas “ainda hoje deve haver pessoas com traumas, pessoas que não conseguem ouvir o barulho de um comboio a passar”, diz.
Após o acidente a Comboios de Portugal (CP) formou uma comissão de inquérito interna para averiguar as causas do acidente, que foi criticada pela câmara e assembleia municipal e exigiram a realização de obras para melhorar as condições da linha como a quadruplicação, que só foi executada anos mais tarde. Um dos maquinistas acabou por ser alvo de um processo disciplinar depois de a comissão de inquérito da CP ter declarado que não accionou o travão do comboio tendo desrespeitado os sinais de trânsito. O sindicato posicionou-se do lado do trabalhador culpando uma falha na sinalização, mas este foi despedido. Houve apoios da CP para as vítimas mas, na opinião de Samuel Matias, faltou criar um memorial com os nomes das vítimas mortais na estação da Póvoa de Santa Iria.