Sociedade | 18-06-2023 10:00

Avieiros são a memória de um rio onde a pesca artesanal há muito deixou de ser atractiva

Avieiros são a memória de um rio onde a pesca artesanal há muito deixou de ser atractiva
Cacilda Vieira, Elisabete, Bárbara e João Guimarães aguardaram junto à Vala do Esteiro a chegada da imagem da Nossa Senhora dos Avieiros na qual depositam a sua fé e devoção

São cada vez menos os que vivem nas aldeias avieiras à beira Tejo e subsistem do que o rio lhes dá, mas a cultura e devoção destas comunidades na região não se deixam afundar. Cacilda Vieira e João Guimarães são dois avieiros de alma e coração que falam a O MIRANTE das suas memórias e dos tempos de mudança, no dia em que Azambuja recebeu a procissão fluvial com a imagem de Nossa Senhora dos Avieiros.

Começou a navegar nas águas do Tejo ainda antes de ter memória e por lá andou com a mãe, o pai e mais cinco irmãos. Nunca aprendeu a nadar, mas a fome era mais forte do que o temor de ir parar ao fundo do rio sempre que era hora de lançar as redes para apanhar barbos e tainhas. Aos 77 anos as memórias de Cacilda Vieira, nascida e criada entre a proa de uma bateira e a aldeia piscatória de Porto da Palha, em Azambuja, vêm à tona nas conversas que se fazem na espera pelo Cruzeiro Religioso e Cultural do Tejo, onde viaja desde 19 de Maio a imagem de Nossa Senhora dos Avieiros numa procissão fluvial que terminará em Oeiras.
À borda de água a mulher de família avieira aguarda a entrada da padroeira na Vala do Esteiro. A maré está favorável, mas a chuva e o vento, atira, podem dificultar a passagem. Esperará o tempo que for preciso para receber Nossa Senhora e acompanhar a pé a procissão até ao centro da vila, onde vive actualmente. Lá na aldeia, onde viveu uma “infância dura” marcada pela fome, ainda vivem “umas primas” que visita com regularidade. “O que lá se viveu não se esquece. Passámos muita fome e dormíamos no barco como ratos, encolhidos e tapados por mantas”. E como nem sempre o que se ganhava com a pesca dava para alimentar todas as bocas, Cacilda foi, aos 12 anos, mandada para os campos de Azambuja, para cavar vinhas e assim ajudar a “dar de comer aos irmãos”.
Mas esses tempos em que as gentes da aldeia se movimentavam fervorosamente em torno do rio, enfrentando os seus perigos com devoção, são pertença do passado. “Famílias avieiras a morar lá não são mais que quatro” que ainda se vão dedicando à pesca artesanal. “A maior parte é tudo gente de Lisboa” que encontrou à beira Tejo um lugar pacato para morar. Apesar da mudança, aquela comunidade pobre e fechada, como é descrita por Alves Redol no seu livro publicado em 1942, é criadora de uma cultura rica, desde a inovação na construção de embarcações, às receitas de pratos de peixe que continuam a integrar os menus da gastronomia ribatejana, passando pela devoção muito própria que levou a que a Igreja Católica, após uma pesquisa profunda das comunidades avieiras que envolveu o Politécnico de Santarém, aprovasse a figura de Nossa Senhora dos Avieiros.

“A nossa zona de pesca não mata a fome a uma família”
De barrete negro ao ombro e calças axadrezadas, João Guimarães, natural de Valada do Ribatejo, Cartaxo, foi dos que se aventurou em tempos nas águas do rio Tejo à pesca do sável e da lampreia. “Já percebia alguma coisa de pesca por isso aprendi com facilidade e gostei. Mas devo dizer que a nossa zona de pesca não mata a fome como deve de ser a uma família porque se faz em épocas de dois meses e meio. Não tem nada a ver com a pesca de mar, mas a gente quando tem gosto pela pesca e pelo Tejo só está bem à borda do rio”, conta.
A cultura ligada aos nómadas do rio que durante décadas migravam durante o Inverno da Vieira de Leiria para o Ribatejo, onde foram acabando por se fixar, absorveu-a da esposa Relinda Guimarães, avieira de alma e coração, nascida e criada na aldeia da Palhota, situada na margem direita do Tejo, no concelho do Cartaxo. Também na Palhota, onde predominam as casas de arquitectura avieira, na maioria palafitas, os habitantes são cada vez menos. “Duas ou três viúvas é quem lá vive. E quem lá pesca já não mora lá”, conta João Guimarães, dando como exemplo o seu cunhado que apesar de aposentado continua a fazer-se ao rio para dele tirar um complemento à reforma.
Com 72 anos João Guimarães vive agora na vila de Azambuja onde lhe surgiu a ideia de recuperar uma velha bateira com pouco mais de seis metros. A mesma que, de há uns anos para cá, vem sendo utilizada para transportar, com a ajuda de um reboque, a imagem de Nossa Senhora dos Avieiros desde a Vala do Esteiro até ao centro da vila. “Esta é das mais pequenas, mas a divisão é a mesma. Na parte de trás era a zona onde se lançavam e recolhiam as redes, no meio [entre duas tábuas que serviam de assento] era a cozinha onde estava uma arca pequena e um fogão a carvão ou petróleo, e na proa era o quarto. É pequeno, mas era aqui que criavam os filhos”, diz.
A escutar a conversa está a sua nora, Elisabete Guimarães, e a neta, Bárbara Guimarães, de 24 anos, que todos os anos fazem questão de participar na romaria. “Somos religiosos e estamos cá para dar continuidade a esta tradição”, remata Elisabete que, minutos mais tarde, juntamente com o sogro, viria a carregar em ombros o andor com a imagem de Nossa Senhora dos Avieiros desde o cais até à tradicional embarcação restaurada. Um momento presenciado na tarde de 8 de Junho por algumas dezenas de populares e avieiros que acompanharam a procissão até à Igreja Matriz, no centro da vila de Azambuja, onde teve lugar uma oração.

Famílias avieiras ladearam a embarcação recuperada por João Guimarães onde seguiu, em procissão, a imagem da protectora dos avieiros

Cruzeiro promove e valoriza cultura avieira

Organizado pela Confraria Ibérica do Tejo, o IX Cruzeiro Religioso e Cultural do Tejo visa a valorização do património histórico, cultural e religioso associado às gentes ribeirinhas, aos avieiros e à sua devoção, contribuindo simultaneamente para a defesa do rio Tejo. A iniciativa, que ao longo das últimas semanas tem passado por vários concelhos da região, desde Abrantes a Salvaterra de Magos, está envolvida na candidatura da Cultura Avieira a Património Mundial. A procissão fluvial só termina a 18 de Junho, depois de percorridos mais de 280 quilómetros.

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