Sociedade | 07-08-2023 10:00

Arte é terapia no tratamento de doenças mentais no Hospital de Santarém

Arte é terapia no tratamento de doenças mentais no Hospital de Santarém
Os utentes encontraram na OficINA um espaço para dar asas à sua criatividade

No Hospital de Santarém há um espaço onde os utentes de Psiquiatria ganham autonomia e auto-estima enquanto desenvolvem a sua arte.

Dos retratos de Leonardo às pinturas abstractas de Elsa Fernandes, a OficINA é uma janela aberta para o mundo onde as emoções se libertam nas telas que agora embelezam os corredores e salas de espera do hospital.

Quando se senta em frente à tela e agarra num dos seus pincéis negros manchados de tinta, Elsa Fernandes entra numa espécie de terapia que a ajuda a libertar as emoções. “Funciona como um catalisador de sentimentos que estão cá dentro. Até os movimentos que faço com o corpo enquanto pinto me ajudam, libertam”. No final de cada obra nasce um sentimento novo, de “realização”, diz a O MIRANTE a utente do serviço de Psiquiatria no Hospital Distrital de Santarém (HDS) que durante “muito, muito tempo” achou que conseguia ultrapassar sozinha uma depressão com episódios de auto-agressão.
Nesta unidade de saúde encontrou, além do acompanhamento médico especializado, um espaço “acolhedor”, no qual se sente “segura” e pode desenvolver a sua arte. Chama-se oficINa – Arte Bruta Inclusiva e acolhe dezenas de artistas da comunidade ou que são simultaneamente utentes no serviço de Psiquiatria do HDS. Os trabalhos realizados por Elsa Fernandes, de 52 anos, e pelos restantes estão agora em exposição nos corredores do piso zero do hospital, sob a curadoria de Ana Carvalho, para que possam ser apreciados. “Sabemos o impacto que a saúde mental tem nos nossos dias e aqui mobilizamos a arte como ferramenta terapêutica”, destaca a presidente do conselho de administração do HDS, Ana Infante, que tal como o presidente da Câmara de Santarém, Ricardo Gonçalves, marcou presença na inauguração da mostra, na quinta-feira, 27 de Julho.
A enfermeira e curadora do projecto OficINA, Carla Ferreira, sublinha a O MIRANTE que projectos como este, além de diminuírem os internamentos psiquiátricos contribuem para a melhoria da qualidade de vida, autonomia e aquisição de competências nos utentes. “Temos utentes que saem daqui e conseguem ir para os seus trabalhos, retomar os seus estudos ou integrar-se nas suas famílias”. Mas realizar trabalhos artísticos, que têm “este poder de libertar”, é um processo que leva o seu tempo. “Um artista não chega e começa logo a fazer isso. Primeiro sente-se confortável a desenhar paisagens, a fazer flores. Só depois de um percurso é que se sente confiante” para dar a conhecer a sua arte e “é aí que se torna libertador e melhora a auto-estima”, explica.
Inês Simões, de 23 anos, foi uma das utentes que passou por esse processo. Licenciada em Artes Plásticas, esteve um período sem pintar por causa da depressão e crises de ansiedade. A ser seguida no HDS desde Janeiro, confessa que demorou “algum tempo” a procurar ajuda. Tal como noutros casos foi a psiquiatra que a segue a apresentar-lhe a OficINA. “Não pensei duas vezes, achei que era boa ideia e fui. Agora três vezes por semana, às 09h00, estou aqui. Há dias em que nem me apetece, mas venho na mesma porque é uma maneira de me levantar da cama porque me comprometi a vir”.
O talento de Inês Simões sobressai à entrada do serviço de consultas externas do hospital numa tela onde esboçou uma figura feminina a trincar um comprimido, imagem impactante acompanhada de versos que compõem a canção “Toma o Comprimido” de António Variações. Aquele retrato espelha, em parte, o seu “eu”: “não gosto dos meus dentes e tenho que tomar comprimidos para me sentir melhor”. Mas o que desenha numa folha de papel kraft ou pinta numa tela varia consoante o seu estado de espírito, explica a artista que trabalha agora num coração humano segurado a duas mãos.

“A arte é uma forma de trazer algo de novo ao mundo”
Os utentes chegam ao departamento de Psiquiatria deprimidos, sem rumo, com tendência para o isolamento, mas com este projecto encontram um espaço acolhedor, seguro e ao mesmo tempo desafiador. Embora a arte não substitua o tratamento psiquiátrico, constitui-se como uma mais-valia da intervenção, tal como o demonstra um estudo, realizado em colaboração com o Instituto Politécnico de Santarém, acerca do seu impacto e importância para estes utentes, ao nível da “auto-estima e da aceitação da doença”, refere a enfermeira Carla Ferreira.
Mas reconhecer que se sofre de doença ou transtorno mental não é por norma um processo fácil, o que leva a que muitas vezes não se procure ajuda e se adie o tratamento. Foi o que aconteceu com Leonardo Mendes, de 21 anos, ao achar que se tratava apenas de uma má fase que ia passar. “Ajuda para quê? Isso passa, pensava eu, mas não passava”, conta já numa fase em que percebe a importância do tratamento na sua saúde mental.
Desde muito cedo que Leonardo Mendes, diagnosticado com depressão, começou a desenvolver um interesse pela pintura e, tal como Inês Simões, quem lhe falou do projecto OficINA foi a sua psiquiatra. “Comecei a ir e gosto de lá estar. A arte, para mim, é uma forma de trazer algo de novo ao mundo”, explica o jovem que conta com nove dos seus trabalhos pintados a óleo e aguarela na exposição intitulada “Obras de Todos”.
Para a curadora e voluntária Ana Carvalho, que encontrou nos corredores, salas de espera e paredes vazias uma forma harmoniosa de expor os trabalhos, o mais importante é que a “arte seja genuína e transmita emoção” a quem a observa. É desta forma que Joana Margarido, de 37 anos, encara a pintura. “Nem sempre sei o que vou fazer mas de repente vem-me a inspiração e começo a pintar”, conta a moradora em Almeirim que faz questão de vincar que todos os dias, logo pela manhã, abre o site de O MIRANTE para se manter informada acerca do que acontece na região.
Durante anos, a arte de Joana Margarido foi outra: a música que tocava na flauta transversal que devido à doença arrumou no saco. “Não conseguia aprender mais, sentia-me deprimida. Agora tenho uma nova forma de arte, é uma alegria para mim, uma libertação. Pintar aqui faz-me muito bem, mas muito bem mesmo”, afirma a doente, que sofre de esquizofrenia, ao mesmo tempo que se desculpa pela comoção. Depois entra para o atelier onde guarda, numa gaveta com o seu nome inscrito, aquelas que são as suas obras de arte ou, se quisermos, o seu remédio favorito que traz felicidade.

Inês Simões voltou a pintar graças ao projecto do Hospital de Santarém

Obras dos utentes podem ser adquiridas

Os trabalhos desenvolvidos neste projecto, que aposta na reabilitação de pessoas com doença mental grave através das suas capacidades artísticas, estão à venda e podem ser adquiridos através do e-mail r.inserir@hds.min-saude.pt. 70% da receita reverte a favor do autor do trabalho e o restante vai para a associação r.INseRIR, sediada na unidade de Psiquiatria do HDS e uma das vencedoras da terceira edição do Prémio Fidelidade Comunidade com um valor total de 47.500 euros, que permitiu desenvolver o espaço OficINA, inaugurado em 2021.

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