Horta cultivada por reclusos ajuda a alimentar 150 famílias de Torres Novas
No Estabelecimento Prisional de Torres Novas há uma horta vertical cultivada por reclusos em fim de pena que ajuda a compor os cabazes entregues a famílias carenciadas. Para quem a trabalha é uma espécie de terapia que aproxima da liberdade e promove o espírito de camaradagem.
Com mais de metade da pena cumprida, Vítor Jesus chegou em Maio deste ano ao Estabelecimento Prisional (EP) de Torres Novas, mesmo a tempo de entrar para o projecto de agricultura que está a ajudar 150 famílias carenciadas naquele concelho. É entre os 90 metros quadrados e as 40 torres verticais onde crescem couves, coentros, salsa, alfaces, espinafres e manjericão, que o recluso de 47 anos se sente livre e, ao mesmo tempo, útil para a sociedade. “Sinto uma liberdade aqui, já não me consigo separar disto. Gosto de saber que estou a ajudar”, diz a O MIRANTE enquanto olha para a fila de torres mais próxima da relativamente baixa vedação em arame que delimita este EP e que em nada se assemelha aos altos muros erguidos na maior parte das cadeias.
Vítor Jesus é um dos 30 reclusos em final de pena envolvidos no projecto “Horticultura vertical, solidariedade horizontal”, apoiado pela Fundação La Caixa-BPI Solidário e que tem como principais linhas de actuação a capacitação da comunidade reclusa em agricultura sustentável; a melhoria da qualidade nutricional das refeições servidas no estabelecimento prisional e, claro, a componente solidária, através do apoio a famílias carenciadas. Para que funcione, a ajuda de todos é necessária e bem-vinda. Enquanto uns lavam as torres e sulfatam as plantações para evitar a propagação de pragas, outros fazem a colheita e semeiam as novas plantas numa espécie de berçário, onde vão crescer até terem o tamanho adequado para serem replantadas nas torres. “Há um companheirismo” à volta deste projecto que “melhorou totalmente as relações entre reclusos. Aprendemos a trabalhar em equipa”, destaca Vítor.
Os reclusos e os guardas prisionais, que também ajudam nos trabalhos, contam com o apoio técnico de José Tavares, agrónomo da Upfarming, empresa que desenvolveu este projecto que assenta num sistema hidropónico, através do qual as plantas, que se desenvolvem num substracto em lã de rocha, recebem os nutrientes necessários através de uma solução introduzida na água que é conduzida por gravidade. É assim que “em pouco espaço se consegue ter muita produção” e de forma mais rápida, explica. Pelas suas contas em cada mês conseguem obter cerca de 350kg de hortícolas e desde o início, em Abril deste ano, já excederam a tonelada de produtos que foram repartidos pela cantina do EP e por três instituições: o Centro de Reabilitação e Integração Torrejano, a Cáritas e a delegação de Torres Novas da Cruz Vermelha Portuguesa.
Para Margarida Vilas-Boas, co-fundadora da Upfarming, esta é uma forma de “tentar que a reinserção seja o mais fácil e positiva possível”. Há um ano, recorda, a lateral esquerda do pátio do EP de Torres Novas, onde está instalada a horta vertical, “era um descampado”. Agora “é um espaço de confraternização, terapêutico, de camaradagem”. Resultante de um investimento de 65 mil euros, dos quais mais de metade foram suportados pela La Caixa, o projecto veio para ficar e não pretende representar peso financeiro para a instituição que o acolhe. Por isso mesmo está a ser equacionada a montagem de uma banca no Mercado de Torres Novas, onde os hortícolas e ervas aromáticas possam ser vendidos ao público.
A directora do Estabelecimento Prisional de Torres Novas, Paula Quadros, refere que este projecto que conta com o apoio da Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, Câmara de Torres Novas, Start-Up Torres Novas, e do projecto Revolution, da chef e influencer Marta Caras Lindas, foi acolhido num EP que ao longo de décadas tem cooperado com a comunidade onde está inserido, tendo ganho o seu “espaço no tecido social”. Considerando-o como “uma mais-valia para o estabelecimento prisional”, Paula Quadros destaca que é uma forma de os reclusos “poderem devolver à comunidade o que esta tem feito por eles, ajudando famílias carenciadas”.
“Aqui somos tratados como uma família”
Desde 2020 que o Estabelecimento Prisional de Torres Novas, actualmente com 38 reclusos, passou a acolher só regimes abertos, ou seja, indivíduos de todas as partes do país que no final de pena vão preparar a sua integração na vida activa. A maioria trabalha ao abrigo de protocolos com cinco autarquias da região (Almeirim, Chamusca, Golegã, Torres Novas e Vila Nova da Barquinha) e alguns com empresas privadas. “São indivíduos que ganham o ordenado mínimo, que ajudam as suas famílias, pagam as indemnizações às vítimas, as custas judiciais e que ainda têm a possibilidade de tirar a carta de condução e de, em regime pós-laboral, frequentarem cursos que mais tarde lhes podem abrir portas. É um estabelecimento prisional que funciona como uma casa de saída de todo o sistema”, refere a directora Paula Quadros, acrescentando que a taxa de sucesso adaptativo é de 85%.
André Casaca é um dos reclusos que, além de cuidar da horta vertical, trabalha como assistente operacional ao abrigo do protocolo entre o estabelecimento prisional e a Câmara da Golegã. Tem 42 anos, cumpre uma pena de 18 anos e pode dizer-se que já correu as cadeias deste país, por mau comportamento, antes de ter entrado há ano e meio para o EP de Torres Novas para concluir o tempo de reclusão. E é neste último que se tem tornado “diferente”, cada vez mais apto a recomeçar a vida fora da cadeia. “Somos poucos e somos mais acompanhados. Aqui somos tratados como uma família, somos chamados pelo nome, nos outros sítios temos números”, diz, evidenciando a sua satisfação com o projecto da horta. “Gosto do propósito de ajudar as famílias desfavorecidas. Apesar de estarmos em reclusão é bom se pudermos contribuir de alguma forma para a sociedade com a qual falhámos”, diz.
Enquanto Vítor Jesus pensa começar uma nova vida em Torres Novas, com receio de voltar a velhos hábitos se for para Marinha Grande, a sua terra natal, André Casaca espera regressar a Vila Viçosa, no Alentejo, onde o aguarda a família e um trabalho que já tem em vista. Desde que cumpre pena tirou a carta de condução, terminou a licenciatura em Ciências Sociais e estreou-se no mundo do trabalho. “Já fui a umas 10 ou 15 entrevistas e já me aconteceu de tudo: não ser excluído e ser excluído pela minha condição, mas não tenho medo do preconceito. Eu fiz a minha parte, cumpri o que tinha de cumprir, espero que a sociedade esteja aberta a receber-me de volta”. Um novo André? “Sim, um novo André”.