Cuidados paliativos: viver sem sofrimento até que a morte nos separe
No Centro Hospitalar do Médio Tejo há profissionais de saúde especializados a trabalhar para baixar para os mínimos o sofrimento dos doentes diagnosticados com doença incurável e progressiva e das suas famílias.
Deparam-se com a sua própria finitude e com a falta de meios para dar resposta a todas as necessidades. São a salvação para as dores, o ombro amigo e ainda ajudam a concretizar últimos desejos.
Quando o cancro entrou na fase terminal Pedro (nome fictício) sabia o que ainda queria fazer aos 31 anos e como queria ser lembrado por todos os que lhe eram queridos. Sabia também que não lhe restava muito tempo. Internado em serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar do Médio Tejo (CHMT), onde a equipa dos cuidados paliativos lhe mantinha as dores controladas, conseguiu preparar os que amava para a sua partida e deixar-lhes uma forma de o poderem revisitar sempre que quisessem. Era esse o seu desejo. Fê-lo através de vídeos que gravou com a ajuda da esposa e da equipa que o acompanhava, para que, de certa forma, ele próprio pudesse ter continuidade na vida daqueles que amava, consciente de que a morte estava próxima. As filmagens duraram até ao dia em que os sintomas se descontrolaram e as dores aumentaram de tal forma que o levaram a pedir sedação paliativa para aliviar o sofrimento nos últimos dias de vida. Uma prática paliativa que “não antecipa a morte, apenas tranquiliza”, esclarece o médico internista e paliativista, David Matias, que olha para a passagem de Pedro pelos cuidados paliativos como um modelo a seguir. “A maior parte dos doentes não tem esta possibilidade de estar consciente durante muito tempo e ele teve tempo e oportunidade de ter uma equipa que lhe deu esse apoio. Revemos muitas vezes este caso para nos superarmos, para ver onde falhámos e onde podemos melhorar”, adianta.
Aceitar a finitude quando se está ciente de que se tem uma doença crónica irreversível ou se está em fim de vida nem sempre é tão fácil como parece ter sido para Pedro. Trata-se de “um processo muito individual de gestão emocional”, começa por explicar a O MIRANTE a psicóloga da equipa multidisciplinar dos cuidados paliativos, Tânia Leite. A própria consulta de paliativos, que geralmente acontece presencialmente, “é uma preparação” para o doente, mas também para a família. “É um trabalho que precisa de maturação emocional”, ou seja, a informação não é largada de rajada, de forma crua ou insensível. Mas não quer isso dizer que por ali se alimentem falsas esperanças. O que acontece é que doente e familiares têm acesso a um “suporte, preparação, antecipação de algum tipo de sintomatologia e progressão da doença” o que faz com que todos fiquem “mais preparados para aquilo que vão ver e que podem vir a sentir”.
É como se a cada palavra, explicação, mas também a cada toma da medicação que lhes alivia significativamente as dores, fossem perdendo o medo da morte, da finitude, mas acima de tudo do sofrimento. É a dor, prossegue a psicóloga, a par da diminuição das capacidades físicas, que mais atormenta os doentes e as suas famílias. “Se é verdade que a doença não tem cura os sintomas têm. É possível com estratégias farmacológicas e não farmacológicas controlar os sintomas. No limite, quando não conseguimos, e raramente não conseguimos, é que fazemos sedação paliativa”, esclarece o David Matias.
Paliativos não são só para o fim de vida
O problema, afirma a enfermeira Joana Cardoso, é que “as pessoas associam os cuidados paliativos só ao fim de vida e não é assim. Deviam ter acesso a estes cuidados todos aqueles com “diagnóstico de doença grave que provoca sofrimento”. Mas para lá chegarmos, além da falta de literacia, faltam camas, recursos humanos especializados e recursos de apoio para aqueles que permanecem no seu domicílio, em lares ou outras unidades que não hospitais. “Somos poucos para tanta necessidade. Muitos de nós não estão a tempo inteiro [nos paliativos] porque não é possível sairmos de outras especialidades para nos dedicarmos à causa. Se todas as referenciações fossem feitas atempadamente neste momento estaríamos entupidos”, completa David Matias, um dos profissionais que integra a meio tempo a equipa Intra-Hospitalar de Suporte em Cuidados Paliativos (EIHSCP) constituída em 2017 e que só este ano já realizou 1.120 consultas mais 54 do que nos 365 dias de 2022.
A diferença entre ser ou não ser referenciado atempadamente é abismal. De um lado consegue-se dar qualidade de vida ao doente tirando-lhe as dores e ajudando-o a encontrar a melhor forma de lidar com essa fase da vida, do outro já não se chega a tempo de o fazer. “Acontece ainda o doente ser referenciado com carácter de urgência quando já não temos um tempo de resposta adequado e entramos na fase dos últimos dias e horas de vida. Nestes casos, já não conseguimos trabalhar com psicologia, preparar o fim e dar acompanhamento familiar”, lamenta o paliativista.
Acompanhar doentes à distância
Nas consultas e no internamento de cuidados paliativos há dois grandes grupos de doentes: os oncológicos e os não oncológicos que sofrem de algum tipo de insuficiência como a cardíaca, renal, hepática ou respiratória e que não tendo critérios de cura - para transplante por exemplo - vão progredindo na doença. A maioria em consulta e internamento sofre de patologia oncológica. É o caso da utente de 91 anos que após primeira consulta está a ser seguida em teleconsulta. A chamada é feita para a filha depois de o lar onde se encontra institucionalizada não atender. Há queixas de uma perna inchada que, na opinião da médica, Eva Claro, requer avaliação presencial por suspeita de se tratar de uma veia entupida. Todos os que são acompanhados pela EIHSCP não só têm consultas regulares como têm contactos directos que podem marcar quando há alteração na sintomatologia.
“Há cada vez mais pessoas a querer ficar em casa, o que até é mais vantajoso, só que chega a uma altura em que há um descontrolo grande de sintomas”, sobretudo quando a morte está para chegar, explica Joana Cardoso. E não havendo uma equipa comunitária de cuidados paliativos - um dos projectos apresentados para a constituição da ULS no Médio Tejo - é difícil dar esse suporte. O que acaba por acontecer, explica a enfermeira, é que as famílias, embora queiram “cumprir a vontade do doente de morrer em casa”, acabam por levá-los para a urgência”.
Serviço de internamento tem quatro camas para 12 concelhos
É no piso três do Hospital de Tomar, no serviço de Urologia, que ficam as quatro camas, consideradas insuficientes para servir 12 concelhos do distrito de Santarém. “São camas para doentes com maior complexidade, não necessariamente em fim de vida, mas com um sofrimento de várias naturezas”, explica o médico internista Rui Silva, salientando que embora apresentem grau de dependência muito elevado conseguem ter os sintomas estabilizados.
Ligado ao internamento de paliativos desde os tempos em que havia no CHMT 10 camas (2008 a 2012) Rui Silva é, tal como a restante equipa, confrontado diariamente com a sua própria finitude. Naqueles quartos e corredores “falar da morte não é proibido, mas antes necessário” e, tal como nas consultas, não se pratica o que a equipa chama de “conspiração do silêncio” que por vezes os familiares querem impor, pedindo para nada ser falado na frente do doente. Aqui, a comunicação ágil é fundamental até porque, elucida, é preciso traçar planos: “se querem, por exemplo, ser reanimados a todo o custo” mesmo sabendo que estando em fase terminal isso lhes “vai causar mais sofrimento”.
“Os cuidados paliativos nem aceleram nem adiam a morte”, mas tornam os sintomas mais leves, dão qualidade e a possibilidade de o doente ter mais tempo e pré-disposição para fazer resoluções de vida. A maior conquista dos profissionais de saúde em paliativos, afiança Rui Silva, é conseguirem dar alta. É o que vai acontecer dentro de alguns dias ao utente de 57 anos internado no quatro onde esta reportagem termina. Diagnosticado com um tumor cerebral incurável e depois de ter perdido toda a mobilidade vai pela segunda vez até casa para viver o tempo que conseguir junto da família. Parte com os sintomas estabilizados, mas sem saber se voltará a ser um dos que ocupa uma das, quatro camas ou se o dia em que o encontramos a comer chocolate porque “faz bem ao cérebro” simbolizou, de certo modo, a sua despedida.
Eutanásia como encobrimento ao desinvestimento nos paliativos
É muito raro um doente seguido em cuidados paliativos afirmar que quer morrer. Esta é a convicção dos profissionais de saúde com quem O MIRANTE falou para esta reportagem a propósito do Dia Mundial de Cuidados Paliativos, que se assinalou a 14 de Outubro. Os profissionais comparam a despenalização da eutanásia à expressão “começar a fazer a casa pelo telhado”. A enfermeira Liliana Gameiro explica: “primeiro tem que se fornecer à população cuidados essenciais a nível de paliativos”. Também para David Matias, objector de consciência (nunca vai auxiliar a prática da eutanásia caso venha a ser despenalizada, como está previsto que aconteça), esta regulamentação foi prematura. “São vários os doentes que numa primeira abordagem nos pedem para morrer porque estão cheios de dores. Quando entramos em acção e mudamos os sintomas a perspectiva muda”, afirma, considerando que regulamentar a eutanásia “se calhar foi uma forma do Governo ultrapassar a falha que existe de cobertura à população em cuidados paliativos” que é grande. Segundo a Ordem dos Médicos existem deficiências graves do sistema de saúde na defesa de cuidados de qualidade no fim de vida sendo que apenas 20% dos doentes elegíveis para cuidados paliativos têm de facto acesso aos mesmos.