Sociedade | 24-12-2023 10:00

O Natal daqueles que o passam a trabalhar

O Natal daqueles que o passam a trabalhar
Catarina Madeira é enfermeira nas Urgências do Hospital Distrital de Santarém

A ceia de Natal é sinónimo de casa, família e aconchego, mas não para todos. Há quem tenha de passar essa noite longe dos que mais ama num dia de trabalho que acaba por ser como tantos outros. Um bombeiro, um segurança, uma enfermeira, uma administrativa e um técnico de farmácia contam como é estar ao serviço e ter de deixar a família em segundo plano.

Em 29 anos como bombeiro Fernando Vieira, sub-chefe de 1ª classe na Companhia de Sapadores Bombeiros de Santarém, já perdeu a conta às noites e dias de Natal em que esteve de serviço, mas encara essa situação com a naturalidade de quem sabia ao que ia quando escolheu a profissão. “Já apanhei muitas noites de Natal e de Passagem de Ano a trabalhar. Já não ligamos muito. Quando entramos nesta actividade sabemos que temos de esquecer os fins-de-semana, os feriados, as noites. De tal maneira nos habituamos a isso que nas noites de Natal, apesar de estar tudo em festa na cidade, para nós é um dia normal de trabalho. Só pedimos a Deus que não haja serviços para estarmos sossegados”, diz com humor o operacional natural e residente em Santarém.
Mas nem sempre as preces a pedir uma noite tranquila são ouvidas. Fernando Vieira recorda como um dos momentos mais marcantes de trabalho em datas festivas um incêndio em plena noite de Natal, há alguns anos, no Hospital Distrital de Santarém que, felizmente, foi rapidamente extinto pelos operacionais. Também se recorda de noites com vários casos de emergência médica e de incêndios em contentores do lixo causados por brasas das lareiras ou braseiras.
Os filhos já estão habituados às suas ausências durante a noite, nos feriados ou aos fins-de-semana, e a esposa, que trabalha no serviço municipal de protecção civil e que em tempos também foi bombeira, já viveu a experiência de estar de serviço quando a maior parte da população dorme ou goza as datas festivas. “São dias como os outros. Entramos ao serviço, verificamos os carros, tomamos café juntos... embora nos jantares de Natal ou de Passagem de Ano haja algumas coisas que não se comem todos os dias, como marisco”, conta Fernando Vieira.
Nessas ocasiões, muitos familiares de bombeiros deslocam-se também ao quartel para estarem com os seus e as crianças aproveitam para brincar e ver os carros dos bombeiros de perto. Também é habitual alguns autarcas passarem por lá para desejar as boas festas aos soldados da paz. São as diferenças que marcam esses momentos que, reforça, “são dias de trabalho como os outros”. Este ano, excepcionalmente, Fernando Vieira, de 44 anos, estará de férias no Natal e na Passagem de Ano retornando ao serviço às sete da manhã de 1 de Janeiro.

Videochamadas ajudam a encurtar a distância
Nelson Lopes também sabe bem o que é ter de passar a ceia de Natal longe da família. Segurança em empresas e entidades públicas há 15 anos, já esteve ao serviço em 12 Natais, fora as Passagens de Ano e outras datas festivas. Casado e com três filhas o segurança, de 37 anos, da Póvoa de Santa Iria, reconhece que custa deixar o conforto do lar para trabalhar durante a madrugada. “É complicado, mas quem é segurança já sabe que quando entra pode trabalhar nestas datas. Temos de estar preparados”, conta.
Em alguns postos de trabalho em que esteve acompanhado cada um levava comida e bebida e acabavam por festejar a data. Quando assim é, recorda, o tempo passava mais depressa. Mas quando está sozinho, como vai acontecer este ano, custa mais deixar a família em casa. “As filhas têm pena mas como trabalho de noite, quando saio de casa elas estão a dormir. No Natal, mesmo que durma menos horas durante o dia, fico com elas para aproveitar a quadra”, conta, acrescentando que, por norma, em termos de trabalho, as noites da ceia de Natal costuma ser tranquilas.
Na mesma cidade, o trabalho da farmácia de serviço vai ser assegurado por Jorge Tavares, de 60 anos, que passará a noite de consoada na Farmácia Quinta da Piedade na Póvoa de Santa Iria. Trabalhar nesta data festiva já não é novidade para Jorge Tavares, que já o fez pelo menos uma dezena de vezes, por amor à profissão. Nas primeiras, recorda, custou mais, mas depois o espírito de missão fala mais alto. “Trabalho por amor à camisola, pelas pessoas que vão precisar de ir à farmácia e que a esperam encontrar aberta e com alguém para as atender. É o espírito humano que devemos ter em todos os dias do ano e em especial no Natal”, afirma.
Aquilo que perde ao não estar com a família ganha em calor humano. “Ganho ao saber que fui útil a outras pessoas. Especialmente quando nos batem à porta pais com crianças a precisar de medicação que é prescrita no hospital. Tenho um filho cirurgião que também vai estar de serviço este ano. Trabalhar na área da saúde implica ter esta disponibilidade”, diz a O MIRANTE o técnico de farmácia que critica o facto de muitos jovens não estarem disponíveis para trabalhar fora de horas.
A televisão e uma máquina de café vão ser a sua companhia durante a noite na farmácia. Sempre viveu o Natal e adora o espírito da quadra por isso é impossível dizer que não custa estar longe da família. “Ainda para mais este ano a família vai para a margem sul e eu estou deste lado. Mas o telemóvel e as videochamadas ajudam a aproximar”, diz-nos o farmacêutico numa conversa também realizada no turno da noite da farmácia da Póvoa de Santa Iria, a poucos dias da Consoada.

Ir à urgência para afastar a solidão
Quando começou a trabalhar na urgência do Hospital Distrital de Santarém (HDS), em 2012, a enfermeira Catarina Madeira não tinha percepção de que muitas pessoas recorriam à urgência para não estarem sozinhas na ceia de Natal. Muitos ficam ali sentados para não sentirem a solidão que essa noite lhes provoca. “Lembro-me de uma senhora que vinha às urgências todas as semanas e houve uma vez que lhe disse que, já que vinha sempre, para também aparecer na noite de Natal que haveria doces. E realmente apareceu porque não tinha com quem ficar”, recorda Catarina Madeira.
A enfermeira ficou órfã de pai aos 13 anos e desde essa altura que o Natal perdeu o encanto que tem sido recuperado nos últimos anos desde que conheceu a esposa, que também é enfermeira e adora esta quadra festiva. Este ano vão ambas trabalhar na noite de Natal e o facto de estarem juntas ajuda a que seja mais fácil. Tal como o telefonema que faz para a mãe que estará em casa com a família reunida.
Na urgência do HDS há bolo-rei e comida que todos levam e vão-se revezando, até porque este acaba por ser um dia de trabalho igual aos outros. “A emoção está mais à flor da pele, seja entre funcionários seja em doentes que se sentem mais frágeis por passarem esta noite longe da família. E há os outros doentes que sentem o mesmo, mas por não terem família. É uma altura muito mais emotiva”, admite.
Fora da urgência há outros serviços que dependem de recursos humanos, que também não param na noite e dia de Natal. É o caso do pessoal administrativo e, em particular, de Clarisse Martinho, administrativa nas urgências do HDS. Recorda o primeiro Natal que passou a trabalhar, ainda como assistente operacional. Todos levaram doces e comida e à volta da mesa da cozinha passaram essa noite juntos. Enquanto administrativa, este vai ser o primeiro ano que vai trabalhar na noite de Natal, mas o facto de entrar à meia-noite permite-lhe jantar com a família.
Na casa da sua mãe, na aldeia da Azenha, freguesia de Arneiro das Milhariças, concelho de Santarém, onde vai ser passada a consoada, Clarisse Martinho gosta de deixar tudo preparado. Após o jantar entrega as suas prendas que só serão abertas à meia-noite e pelas 23h00 vai trabalhar. “Estamos sempre alerta porque os doentes podem chegar a qualquer hora. Somos o primeiro contacto do doente com o hospital”, sublinha a administrativa, que considera que neste trabalho é preciso tratar todos os assuntos com calma e ponderação.

Clarisse Martinho trabalha como administrativa nas Urgências do Hospital Distrital de Santarém
Nelson Lopes admite que lhe custa ter que deixar a família na noite de Natal para trabalhar
Fernando Vieira é sub-chefe de 1ª classe na Companhaia de Sapadores Bombeiros de Santarém
Jorge Tavares trabalha na farmácia Quinta da Piedade, na Póvoa de Santa Iria

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