Memórias da consoada na guerra do Ultramar
Antigos combatentes evocaram alguns episódios passados na noite de Natal durante o conflito militar nas ex-colónias africanas. Ao contrário da rábula da guerra celebrizada pelo humorista Raul Solnado, ali não havia horas combinadas para os ataques e muitas vezes as consoadas foram passadas debaixo de fogo.
Era 24 de Dezembro de 1972 e Maria Moura partia de Vila Cabral, Moçambique, até ao mato, num avião. Queria ir ter com o marido, Manuel Moura, militar que tinha ficado de prevenção naquele dia e já não podia ir passar o Natal a casa. “Se a mulher do comandante também lá estava com o marido, eu também tinha o direito de estar”, recorda Maria Moura, que levava consigo o filho David, de seis anos. Quando o avião aterrou o marido ficou estupefacto.
Estava a jogar futebol e viu a mulher chegar sem estar à espera. “Achei fartura a mais. Perguntei logo o que é que ela estava ali a fazer”, diz a sorrir. Uma aventura que não era a primeira para a esposa do actual sargento chefe aposentado, de 77 anos, que combateu na guerra colonial em Moçambique e em Angola. Maria, agora com 73 anos, sempre que podia apanhava um avião e ia ter com o marido. “Já tinha carne de vaca e camarão para a consoada. Assim que me disseram que ele ia ficar de prevenção e não podia ir passar o Natal a casa eu disse logo ao piloto do avião para me levar ao mato”, afirma, enquanto vão mostrando a O MIRANTE fotografias e uma colher de pão com “Moçambique” cravado na madeira. Recordações muito especiais e que a fazem afirmar que “era uma aventureira”, pois nessa noite, e em muitas outras, dormiu em colchões da tropa no chão. O Natal para os ex-combatentes do ultramar não era um período fácil.
Não só pelas saudades de casa e da família mas também porque a guerra seguia o seu curso indiferente ao calendário. Rogério Ferreira, 68 anos, que na época era furriel e combateu na Guiné entre 1970 e 1971, conta: “Estávamos a passar a consoada no quartel e houve um ataque pelas 19h00, quando começávamos a comer. Tivemos logo de nos ir esconder para dentro das valas com o prato da comida”. Acrescenta que, depois desse ataque, a noite de consoada ficou estragada e que se ficaram apenas pelas aguardentes. “A vida em África era isto, sempre com o coração em ânsias” Também Jorge Rosa, de 72 anos, actualmente tenente-coronel na reforma, se recorda de uma consoada em que viveu dois ataques em Angola. “No dia 24 de Dezembro os soldados precisavam de um oficial para ir comandar uma coluna para ir buscar o correio e eu fui. A meio da viagem de jipe rebentou uma emboscada, mas foram só uns tiros e foram-se embora. Quando chegámos ao quartel fomos festejar a noite de Natal”, recorda, acrescentando que nessa mesma noite houve também um ataque no quartel. “Felizmente não houve mortos. A vida em África era isto, sempre com o coração em ânsias”, diz. Meses depois foi ferido em combate e ficou sem uma perna. Tem uma cruz de guerra e afirma que no Natal havia uma melhoria na alimentação. “Não faltava o bacalhau, que às vezes era mais sal do que bacalhau. Não havia bolo rei, mas havia umas bolachas fabricadas pela manutenção militar e um copinho de vinho”, salienta o sargento-ajudante aposentado Almiro Dias, 81 anos, que combateu em Moçambique, Angola e Guiné, entre 1960 e 1974, dizendo que aquela era a época do ano em que todos se lembravam da família e dos amigos com mais saudade. Na noite de consoada era redobrada a vigilância, pois as forças adversas podiam aproveitar para efectuarem um ataque. “Quem estava de serviço tinha de estar com atenção para salvaguardar os outros camaradas que não estavam de serviço”, afirma. Jaime Cunha, 81 anos, que na época era primeiro-sargento e que esteve em Angola durante quatro anos, diz que na consoada se procurava fazer no mato o que se fazia em casa. “Nós tentávamos esquecer a saudade bebendo mais um copo e lá se ia aguentando”, relembra, emocionado.
Depois havia quem usasse os talentos para o desenho em cartões grandes de Natal. “Havia sempre uns rapazes com jeito para o desenho e fazíamos um cartão escrito com Feliz Natal, tirávamos fotografia e mandávamos através de carta para a família em Portugal”, conta António Madeira, de 76 anos, que era primeiro-sargento enfermeiro. “Nós éramos uma família. Nessa época para nos divertirmos até fazíamos passagens de modelos”, diz. Combateu pelo país em Angola, entre 1961 e 1963, e recorda um ano em que, antes do Natal, andaram 58 dias consecutivos a comer uma lata de atum, uma lata de sardinha e um pacote de bolachas por dia. E também sentia muitas saudades. “Estávamos todos longe, tão longe.
Estávamos todos isolados no mato. Era muito difícil. Lá não havia onde se comprasse uma cerveja ou uma garrafa de água”, lembra. Mas também há quem tenha boas recordações desses tempos e afirme mesmo que se tivesse de voltar novamente à guerra, gostava de voltar a fazer o que fez. Rui Sobral, 65 anos, actualmente é empresário e foi soldado em Moçambique entre 1970 e 1974. “Numa consoada tivemos uma festa de Natal, na zona do mato, em plena guerra. Estava lá um primeiro-sargento connosco e estava lá a esposa grávida. Passámos a noite a fazer rabanadas. Éramos nós e uma senhora.
Também se cantou o fado e tocaram-se umas guitarradas”, referiu, confessando ainda que “havia muita saudade da família, mas aquela era uma nova família militar”. Ex-combatentes ribatejanos confraternizaram em almoço de Natal As recordações muito especiais foram contadas na primeira pessoa por ex-combatentes de guerra das antigas províncias ultramarinas durante o almoço de confraternização de Natal do Núcleo de Santarém da Liga dos Combatentes, que decorreu no Cartaxo. Durante o convívio, o presidente da Liga, Carlos Pombo, revelou uma carta escrita há 101 anos por Alfred Chater, um jovem oficial do exército britânico, que combateu na 1ª Guerra Mundial.
Uma carta dirigida à mãe, durante uma curta trégua de Natal. A carta é de 25 de Dezembro de 1914, em que o jovem relata que dois alemães saíram das trincheiras e foram na sua direcção. “Nós estávamos prontos para disparar contra eles, mas reparámos que eles não tinha armas. Após ordem superior, um dos nossos homens foi mandado ao encontro deles e passados dois minutos a zona entre as duas trincheiras estava cheia de homens a apertarem as mãos com sorrisos rasgados e a desejarem um Bom Natal”, leu o presidente da Liga dos Combatentes, acrescentando que Alfred Chater escreveu ainda à mãe que deu apertos de mãos a vários soldados alemães e que trocaram cigarros, autógrafos e até se tirou fotografias do momento.
Artigo publicado na edição de 23 de Dezembro de 2015