Vale de Santarém é o epicentro da comunidade imigrante que veio para ficar
Oriundos de países asiáticos, instalaram-se no Vale de Santarém onde residem e se juntam para rezar numa mesquita improvisada.
A maioria trabalha na agricultura, mas há quem prospere com pequenos negócios. Partilham casa ou quarto e a vontade de ficar neste país, onde se imaginam a educar os seus filhos. Retratos de uma comunidade que tem crescido nos últimos anos, a propósito do Dia Internacional das Migrações que se assinala a 18 de Dezembro.
No Vale de Santarém há um multiculturalismo crescente que contrasta com os que ali moram desde sempre. A comunidade de imigrantes que ali se tem instalado, maioritariamente oriunda da Índia e do Paquistão, não só esgotou as velhas casas que durante anos permaneceram vazias, como deu vida ao comércio local. A cada meia dúzia de passos, nalguns casos menos, há agora uma barbearia, uma mercearia paquistanesa onde se vendem produtos nacionais mas maioritariamente de origem asiática, e até uma mesquita onde, num silêncio profundo, os muçulmanos rezam várias vezes ao dia.
É numa dessas mercearias que Sagid Hussain dá as boas-vindas em inglês. “Falo muito pouco português”, avisa na mesma língua do cumprimento. A residir há três anos no Vale de Santarém, a única terra portuguesa onde morou, conta que imigrou sozinho com a ajuda de “outras pessoas” que já conhecia e que, tal como ele, vieram em busca de uma nova vida. “No Paquistão era muito difícil em termos financeiros. Aqui é bom, os portugueses são bons”, diz, explicando que também lá trabalhava numa mercearia por conta de outrem.
Sagid Hussain não tem dúvidas de que o principal problema no Vale de Santarém é a habitação. “É um lugar pequeno, já não há casas para tantas pessoas da Índia e do Paquistão. Os que vêm de novo já não vêm para cá, agora vão para Santarém ou para o Cartaxo”. Há, claro, senhorios ou intermediários que se aproveitam desta situação, pedindo valores exorbitantes por uma habitação onde depois acabam por morar mais pessoas do que aquelas que as divisões conseguem condignamente albergar. “Há os que pedem mil ou dois mil euros por uma casa, mas depois vivem lá umas 20 pessoas dentro”, alerta a técnica superior responsável pelo Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM) do município de Santarém, Estrela Branco.
Não é o caso de Sagid Hussain nem do jovem Ghalib, que curiosamente tem o mesmo apelido que o primeiro. Ambos pagam cerca de 70 euros de renda nas casas que partilham com mais duas e três pessoas, respectivamente, “sem despesas de água e luz incluídas”, esclarecem. “A minha é uma velha e pequena casa fria”, atira Sagid em tom de lamento, mas com a vantagem de não ter de partilhar quarto. Ghalib não tem, para já, essa sorte. Aos 22 anos é um dos muitos paquistaneses que pela manhã se vêem dentro das carrinhas que seguem para os campos agrícolas da lezíria ribatejana. Cartaxo, Azambuja e Almeirim são alguns dos terrenos que pisa ora para a apanha do tomate ora para o varejar da azeitona, aquele que é por norma “o último trabalho do ano”. Trabalha em média 10 horas por dia, não tem colegas portugueses – à excepção do “chefe” - e recebe mil euros por mês. “É bom?”, questiona Ghalib, que já na adolescência andava em trabalho nos campos agrícolas da Grécia. Habituado a estar longe da família que permanece no Paquistão veio palmilhando em direcção ao ocidente europeu, com mais quatro amigos. “Quero ficar em Portugal para sempre. Gosto de tudo aqui”, afirma com convicção o jovem que faz questão de envergar as tradicionais vestimentas do seu país e, em pleno Dezembro, umas sandálias nos pés.
Maioria não fala nem compreende português
“A chave da integração é aprender a falar a língua”, prossegue Estrela Branco, lamentando a fraca procura da população asiática para aulas de português. “Há alguns que estão cá há três e quatro anos e não falam uma palavra de português. Para os ajudarmos temos que ser nós a falar inglês”. Mais uma vez, também neste campo a população asiática parece funcionar numa rede isolada. Na antiga escola primária do Vale de Santarém, conta-nos Sagid Hussain, há uma turma de indianos e paquistaneses a aprender português. Por agora, explica, não estão a aceitar mais alunos mas é sua intenção e de Ghalib ingressarem na próxima que abrir.
A uns 300 metros encontramos a indiana Babli sentada atrás do balcão de um mini-mercado, cujo patrão diz ser seu amigo. Os produtos que se vendem são essencialmente asiáticos, mas encontram-se alguns artigos nacionais como o atum, o café e o grão-de-bico. Há ainda à venda chapéus, isqueiros e meias alusivas ao Natal. Babli estranha a entrada das duas repórteres de O MIRANTE mas rapidamente fica à vontade para partilhar a sua história através do pouco inglês que sabe. Tem 53 anos e voou há cinco, com o marido, da cidade de Chandigar, na Índia, para Portugal, país que descreve como bonito e calmo. Passou por Azambuja e entretanto mudou-se para o Vale de Santarém, onde mora agora sozinha, a cinco portas da loja, após a morte do marido. 450 é o valor que escreve na calculadora para dizer quanto paga de renda. Com título de residência válido até 2025, Babli pretende voltar antes à Índia para abraçar os quatros filhos que durante os cinco anos apenas conseguiu visitar uma vez.
Rezar cinco vezes ao dia no anexo convertido em mesquita
Ao contrário de Babli, o paquistanês de 52 anos, Aziz Kham, fala inglês fluente, fruto dos anos como professor da disciplina no ensino secundário. Apesar da nobre profissão, o que ganhava não era suficiente para sustentar a família - a mulher, o filho e a filha, ambos menores. Acredita que Portugal é o melhor país para imigrar e sente-se feliz por ter trocado Lisboa, onde chegou a pagar 200 euros por uma cama, pelo Vale de Santarém, com o valor a ficar pela metade. A casa onde vive tem três quatros e é partilhada por oito homens. Não é o ideal, reconhece, mas espera um dia poder ganhar o suficiente para trazer a família para o Vale e pagar uma casa condigna.
Há um ano na freguesia - a segunda do concelho que mais população imigrante alberga, a seguir à União das Freguesias da Cidade de Santarém – Aziz explica que a comunidade residente o faz sentir em casa porque “conhecem as situações uns dos outros” e “ninguém – nem mesmo os portugueses - quer saber” como cada um anda vestido. No seu caso todo de branco, com um topi (chapéu paquistanês) na cabeça, uma camisa pelos joelhos e umas calças atadas com uma corda. Aziz Kham, que actualmente é um dos muitos paquistaneses que trabalha no campo com o sonho de voltar a ser professor, convida-nos a conhecer uma mesquita improvisada, a única num raio de 50 quilómetros, que fica nas traseiras da casa de Syed Afzal, de 49 anos, e do seu mercado Al Sadaat Asian.
É ali que os muçulmanos chegam a rezar cinco vezes ao dia cerca de cinco minutos, sendo a sexta-feira o dia com mais gente. “A mesquita é a nossa fonte de comunicação, conhecemos pessoas de vários sítios e perguntamos por trabalho”. As repórteres descalçam-se à entrada, a pedido de Syed, e mergulham na cultura muçulmana, ao som da voz do imã que cai sobre os homens ajoelhados nos enormes tapetes que cobrem o piso do espaço de oraçãofechado e de um outro ao ar livre. “Às sextas-feiras é como se fosse um festival”, diz em tom divertido Syed Afzal, dono do espaço que recebe muçulmanos das várias freguesias de Santarém e de concelhos vizinhos onde não há mesquitas. Ao contrário da maioria dos imigrantes, conseguiu estabilizar-se e trazer a mulher e os filhos para Portugal. Ver a mesquita que a comunidade muçulmana ajudou a construir enche-o de alegria ao mesmo tempo que o aproxima do Paquistão ou se quisermos, em urdu, “a terra dos puros” para onde nenhum parece querer voltar.
Brasileiros em maioria entre a comunidade imigrante
O número de população estrangeira a residir no concelho de Santarém tem aumentado significativamente nos últimos dois anos. Embora não haja números oficiais referentes a 2022 e 2023, de acordo com os dados oficiais disponibilizados pelo antigo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e relativos a 2021, Santarém apresentava 3.407 cidadãos imigrantes, com os brasileiros (901) a ocupar o primeiro lugar da lista, seguidos dos indianos (653) e romenos (492). É também a população proveniente do Brasil quem mais procura ajuda no Centro Local de Apoio à Integração de Migrantes (CLAIM) e os asiáticos os que menos recorrem a este serviço. “Estes têm uma lógica de actuar em rede. Já tem alguém conhecido cá e muitos vêm através de empresas de trabalho temporário. É uma comunidade muito fechada que se apoia”, refere Arsénio Duarte do CLAIM. Maioritariamente, os indianos e paquistaneses trabalham na agricultura, aceitando fazer os trabalhos que os portugueses não querem fazer e aqueles em que há falta de mão-de-obra.