Humberto Baptista perdeu a visão e teve que reaprender a viver
O Forte da Casa é uma armadilha para quem não consegue ver, com carros nos passeios, pilaretes, buracos mal assinalados e floreiras no caminho de quem é cego. Na semana em que se assinala o Dia Mundial do Braille, O MIRANTE partilha a história de Humberto Baptista, pasteleiro, que perdeu a visão pouco depois dos 30 anos e teve de reaprender a viver.
Ficar cego pode ser uma situação irreversível mas o importante é que a pessoa nunca desista nem se deixe abater pela inevitabilidade, diz Humberto Baptista, 66 anos, morador do Forte da Casa que cegou pouco depois dos 30 anos. Deixar de ver foi uma descida ao inferno. Primeiro não aceitou a doença, refugiou-se no álcool para superar uma depressão - o que ainda foi pior - e depois isolou-se do mundo. Só ao fim de uns anos, motivado por uma cunhada que lhe ofereceu uma bengala, começou a sair de casa. Primeiro durante poucos minutos e depois gradualmente, andando e caindo nas ruas do Forte da Casa, que diz serem um inferno para quem não vê.
Natural de Miragaia, concelho da Lourinhã, Humberto Baptista viveu quase toda a vida no concelho de Vila Franca de Xira e trabalhava como pasteleiro em Lisboa. Aos poucos começou a ver uma neblina que pensava ser provocada pelos óculos e os vapores dos fornos. Afinal era mesmo uma doença genética sem cura chamada retinose pigmentar, um grupo de distúrbios genéticos raros que afectam a capacidade da retina em processar a luz, resultando numa perda gradual da visão. A nível mundial, a doença afecta uma em cada 40 mil pessoas e os primeiros sintomas são a dificuldade em ver à noite e na visão periférica (lateral). A maioria dos doentes com retinose pigmentar perde grande parte da visão quando são jovens adultos e aos 40 anos são já muitas vezes considerados cegos.
A mãe e dois irmãos de Humberto Baptista também ficaram cegos. Casado e com um filho, diz que o choque inicial de perder a visão pode ser aterrador. “Isolei-me em casa, deprimi, não aceitei e ainda hoje não aceito não ver. Demorei muitos anos a habituar-me. Mas importante é a pessoa não ficar em casa isolada e tentar seguir em frente”, explica a O MIRANTE.
Agredido e atropelado
A crueldade da sociedade e a indiferença são o que mais o magoa. “Muita gente acusava-me de andar a disfarçar, que andava pela rua a fazer-me de cego para sacar a pensão”, lamenta. Um dia bateu com a bengala num carro que estava estacionado em cima do passeio e foi agredido a murro pelo dono do carro. “Chamou-me nomes, deu-me murros, partiu-me uns óculos, magoou-me. As pessoas tratavam-me tão mal que fui obrigado a mudar de casa e a comprar outra”, partilha com tristeza.
Noutra ocasião, há três anos, uma carrinha de caixa fechada a fazer marcha atrás não o viu e atropelou-o. “Arrastou-me pela estrada e partiu-me a cabeça, foram outras pessoas que avisaram o condutor. Fui para o hospital muito mal”, recorda. O morador do Forte da Casa culpa a falta de civismo das pessoas e o mau planeamento urbano. “Não fazem as coisas a contar com quem não vê. Eu sou assim mas posso não ser o único e ninguém está livre de um dia ficar na mesma situação. Vou contra os postes, pilaretes, está tudo no meio do passeio, por isso é que é complicado vir à rua”, confessa.
Humberto Baptista vive em carência económica e recebe apoio domiciliário para as refeições. Já pediu ajuda à Câmara de Vila Franca de Xira, no âmbito do programa Xiradapta, para poder eliminar barreiras arquitectónicas dentro da sua casa de banho, mas não lhe foi aprovada a candidatura. “Fui pedir orçamentos a construtores, andei a tratar de tudo para, ao fim de um ano, a câmara me dizer que não reunia as condições. Não é assim que se ajuda as pessoas. Os cegos pouca defesa ou nenhuma têm”, critica o morador.
Alguém pode ajudar?
Humberto Baptista não aprendeu braille o que lhe dificulta o dia a dia. Durante três meses esteve no Centro de Reabilitação de Alcoitão mas, conta, “nessa altura estava tão revoltado e não aceitava o que me tinha acontecido que não aprendi braille”, diz, confessando hoje ter sido um grande erro. Já pediu à associação de cegos ACAPO para lhe darem um leitor onde possa ler cartas e jornais, que era um dos seus prazeres da vida, mas foi-lhe exigido ir a Lisboa e pagar uma consulta, para a qual não tinha dinheiro, só para lhe passarem um atestado que permitisse ir à Segurança Social candidatar-se a esse apoio.
Usa um antigo telemóvel Nokia, ainda com botões, mas precisa de um smartphone para poder instalar uma aplicação para cegos que o ajude a marcar e a atender chamadas. “Se alguém tiver um telefone em bom estado, mesmo usado, que queira doar, seria uma grande ajuda que me davam e facilitava-me imenso a vida”, apela Humberto Baptista, que continua a acreditar num futuro melhor.