Leonor Teles: “é revoltante ver muitos artistas a passar fome”
A premiada realizadora de Vila Franca de Xira, Leonor Teles, esteve em Santarém a apresentar a sua nova longa-metragem filmada na Ásia e conversou com O MIRANTE sobre a arte, a vida e o que a inquieta no dia-a-dia, incluindo a crescente incapacidade das pessoas em relacionarem-se frente a frente e longe de ecrãs. Uma “incomunicabilidade agravada” que desagrada à cineasta.
Os direitos e deveres que julgávamos garantidos estão sempre sob ameaça e por isso é preciso que, em consciência, todos saibamos ser inquietos na sociedade actual. Uma mensagem que guia o dia-a-dia de Leonor Teles, jovem cineasta de Vila Franca de Xira que saltou para as bocas do mundo em 2016 quando se tornou na realizadora mais jovem de sempre a ganhar um Urso de Ouro no Festival de Berlim e agora se prepara, a partir de 8 de Fevereiro, para estrear a sua nova longa-metragem por todo o país. É a segunda que realiza depois do documentário “Terra Franca”, de 2018.
“Alguns direitos e garantias que julgávamos garantidos estão em perigo e é preciso que as pessoas e os jovens se envolvam mais activamente na vida política e se preocupem com a vida em comunidade. Temos de perceber que não podemos simplesmente viver a nossa vida desligados do mundo que nos rodeia”, defende a O MIRANTE.
Leonor Teles esteve em Santarém a apresentar “Baan-Casa”, um filme sobre a vida adulta, relacionamentos traumáticos e a sua relação com as carreiras profissionais, filmado num cenário asiático que sempre a fascinou (ver caixa). “Ver artistas que passam fome para trabalhar devia-nos entristecer a todos enquanto comunidade. É revoltante ver um país onde muitos artistas têm de passar fome para trabalhar. Isso só reflecte o quão nós não sentimos a cultura e as artes como importantes e parte integrante da nossa identidade e do nosso país. É preciso compreender que as artes e os artistas são uma componente fundamental da nossa sociedade”, defende.
A realizadora diz conseguir viver só do cinema, dos seus filmes e dos filmes de outras pessoas em que participa, incluindo televisão e publicidade. Mas questionada sobre se não valia a pena acabar com um Ministério da Cultura que gere pouco mais de 1% do orçamento do país, Leonor Teles atira um rotundo não. “Vale sempre a pena ter um Ministério da Cultura. Não é porque os apoios são curtos que deve deixar de existir. Devemos é insistir para que haja maior valor e que mais pessoas possam ser apoiadas”, defende.
“O Urso de Ouro não deu cabo do meu sossego”
Leonor Teles é uma mulher que não gosta de estar no centro das atenções e confessa não ser fã de entrevistas. “O que tenho a dizer está nos meus filmes”, confessa-nos, lamentando o facto de vivermos numa sociedade que tem dificuldade em expressar-se e comunicar fora dos ecrãs dos telefones. “Existe uma incomunicabilidade agravada”, lamenta a cineasta que é, acima de tudo, apaixonada por fotografia e os elementos que a compõem: a luz e a cor. “Não devemos ter medo da cor e de usar esses elementos para trabalhar as emoções. Isso é algo que tentei trabalhar em todos os meus filmes: as emoções. Às vezes é difícil usarmos palavras porque os sentimentos são sensações e o lado sensorial da imagem ajuda-me a criar estas emoções”, explica. Gosta de fotografar em rolo e especialmente fotos a cores. Já visitou várias vezes a Bienal de Fotografia de VFX e admite um dia vir a concorrer embora não lhe seja uma prioridade no imediato.
Oito anos depois de ter sido notícia mundial por ter ganho o Urso de Ouro no Festival de Cinema de Berlim com a curta “Balada de um Batráquio”, Leonor Teles continua a defender que o prémio não a definiu enquanto pessoa. “Na altura foi surreal mas não deu cabo do meu sossego. Foi o que me permitiu voltar a filmar e filmar rapidamente. Poder estrear o “Baan-Casa” e concretizar este sonho de ir filmar a Banguecoque (Tailândia)”, afirma a mulher para quem o objectivo não é receber prémios. O filme que a define ainda está por sair. “Chamar carreira a quatro filmes é ingrato. Ainda agora comecei e não sei qual será o futuro. Espero que ainda haja muita coisa para vir e que eu possa poder experimentar, inovar, aprender e alcançar muita coisa”, nota.
E um filme de terror no Vila Franca Centro? - perguntamos, aludindo ao antigo centro comercial que está há anos ao abandono no centro de Vila Franca de Xira. “Não sei. Não sou a pessoa indicada para tecer comentários sobre Vila Franca de Xira. O meu tempo lá passo-o com a família e não habito a cidade e não usufruo do que acontece em VFX, por isso francamente não sei em que ponto está a cidade neste momento”, confessa Leonor Teles.
A autora diz-nos que nunca dorme bem na véspera de começar uma rodagem por estar sempre nervosa e ansiosa. “É uma responsabilidade bastante grande e quero sempre que tudo corra bem. As rodagens são processos muito bons e estimulantes mas também são alturas de muito stress e há muitas coisas que não controlamos. Temos de jogar com esses factores e fazer o melhor possível”, explica.
Wong Kar-Wai, Chiang Shen ou Christian Martel são alguns dos seus realizadores de eleição e que ajudam a explicar a sua paixão pela Ásia. “O cinema asiático sempre foi algo de que gostava muito e que sempre senti como estando próximo de mim. Achei que podia ir buscar essa sensibilidade e trazê-la para este filme. Lisboa também tem um bocadinho da Ásia e por vezes as pessoas esquecem-se disso”, conclui.
Ódio e intolerância só nos atrasam
Leonor Teles tem 32 anos e é filha de pai de origem cigana e mãe não cigana. Não está associada a partidos políticos mas questionada sobre as vozes de extrema-direita que se ouvem no Parlamento a apontar o dedo à comunidade cigana a cineasta é clara: “Não subscrevo discursos de ódio e não gosto de dar palco a essas vozes. Só legitimam o ódio e a intolerância que já existe. O ódio e a intolerância não nos impulsionam para a frente enquanto país, só para trás”.
Um filme sobre casa quando se fica sem ela
O filme “Baan-Casa” foi exibido em ante-estreia em Santarém na noite de 31 de Janeiro numa sessão promovida pelo Cineclube de Santarém. Um filme sobre a noção de casa que, ironicamente, foi dirigido numa altura em que a própria Leonor Teles ficou sem a casa onde vivia em Lisboa. Ainda assim, diz, nunca lhe passou pela cabeça voltar a Vila Franca de Xira para viver. “Gosto muito de VFX, passei lá mais de metade da minha vida mas para já não é um sítio para onde queira regressar”, diz Leonor Teles, assegurando que entretanto já conseguiu encontrar outra casa onde viver na zona de Lisboa.
“As histórias de amor são feitas de desamores e desilusões. A ideia para o filme veio desta procura de casa num sentido emocional, não tanto o objecto físico, do edifício, mas muito mais do que é este sentimento de lar, o lugar onde pertencemos e nos sentimos bem. Casa é onde nos sentimos felizes”, refere.
A O MIRANTE, a cineasta disse ter saído de Santarém de coração cheio e elogiou a iniciativa do Cineclube de Santarém. “Correu bastante bem, a sala estava composta e foi surpreendente ver que as pessoas em Santarém também procuram ver cinema português e querem apoiá-lo. Isso foi muito bom. Foi uma óptima recepção”, afirma Leonor Teles.