Lutar contra o cancro e ficar para contar a história
Na família de Cecília Francisco, da Chamusca, quatro mulheres tiveram cancro de mama. Carla, a mais nova a receber o diagnóstico, não sobreviveu.
Sónia Lapa, de Samora Correia, enfrentou duas vezes a doença que a obrigou a reaprender a viver com a nova imagem e as dores que ficam. Estas são duas mulheres que enfrentaram o cancro de mama e que partilham com O MIRANTE as suas histórias a propósito do Dia Mundial do Cancro.
Cecília Francisco foi sempre vigiada e fazia mamografia de seis em seis meses depois da sua irmã, três anos mais nova, ter sido diagnosticada com cancro de mama aos 38 anos. A partir daí começou a pensar que qualquer dia lhe calhava. E não se enganou. Aos 49 anos sentiu um pequeno nódulo na mama direita ao qual não deu importância e, apesar de sentir falta de força no braço, adiou a ida ao médico.
A mamografia de rotina veio, desta vez, com um diagnóstico diferente que foi difícil de aceitar: Cecília tinha cancro de mama. Encaminhada para o Instituto Português de Oncologia (IPO), onde lhe disseram que tinha de retirar as duas mamas, confessa a O MIRANTE que nesse dia, apesar de ser uma pessoa positiva, chorou muito. “Queixava-me porque tinha o peito grande e gostava que fosse mais pequeno mas ter que retirar tudo foi muito duro”, recorda com a voz embargada, numa conversa a propósito do Dia Mundial do Cancro, que se assinala a 4 de Fevereiro.
Seguiram-se tratamentos de quimioterapia e radioterapia, ao mesmo tempo que a sua irmã mais velha era diagnosticada com a mesma doença. Foram operadas com um mês de intervalo, mas os casos de cancro na família não se ficaram por aqui. Também a filha da irmã mais velha de Cecília, Carla, desenvolveu a doença, diagnosticada na sequência de uma queda. “Foi a minha sobrinha que incentivou a minha irmã a fazer exames tendo em conta o historial de cancro na família. Foram diagnosticadas com cancro de mama com poucos meses de diferença”, recorda. Os médicos acabaram por constatar, após vários exames, que a doença nesta família é genética.
O cancro que atingiu a sobrinha de Cecília Francisco já estava num estágio avançado quando foi detectado e metastizou para o cérebro. Realizou uma cirurgia delicada, que acabou por não ter sucesso, com Carla a falecer pouco tempo depois quando a sua mãe ainda estava a recuperar da doença. “Foram tempos muito difíceis. Eu e a minha irmã fizemos tratamentos ao mesmo tempo. Logo depois, a doença e morte da minha sobrinha aos 34 anos, que deixou dois filhos menores. Nem queria acreditar no que estava a acontecer”, lamenta a mulher que contou com o apoio do marido na aceitação ao seu novo corpo após a reconstrução mamária.
Cecília Francisco, que está reformada há cerca de sete anos com 70% de incapacidade física e continua a ser acompanhada com regularidade, garante não ter medo da morte, mas quer viver pela sua família e, sobretudo, pelas netas, ainda pequenas. “Depois destas situações damos muito mais valor à vida e ao que realmente importa. Deixamos de nos preocupar com o que é material. O mais importante é a harmonia e o amor da família e estarmos em paz”, reflecte, acrescentando ser importante falar destes assuntos para alertar o máximo número de pessoas para que se cuidem e façam exames com regularidade.
Lutar contra a doença pela segunda vez
A palavra proibida depois do cancro é metástase. Foi essa a palavra que Sónia Lapa ouviu da boca dos médicos quando teve conhecimento do resultado das análises aos gânglios das axilas. Começou assim um novo processo na luta contra o cancro da mama. “Tive o primeiro cancro na mama em 2016 em que fiz quimioterapia e mastectomia. Quando atingi os cinco anos, em 2021, estava na expectativa de ter alta hospitalar e ficar livre oficialmente da doença. Mas durante o Verão apareceu uma impinge na mesma mama que tinha sido retirada. Pensei que era uma reacção alérgica ao calor mas a borbulha foi crescendo”, conta.
Em Novembro de 2021 Sónia Lapa, actriz ligada ao grupo de teatro Revisteiros e muito acarinhada no concelho de Benavente, foi vista pela oncologista mas, por causa da pandemia de Covid-19, a biópsia apenas se realizou em Março de 2022 e só em Maio soube que tinha cancro. “O dermatologista perguntou-me o que estava ali a fazer e, com a maior frieza, disse que tinha cancro. O meu mundo caiu outra vez e andei a apanhar os pedacinhos. O processo foi muito mais doloroso do que na primeira vez. Levei muito mais quimioterapia e 30 sessões de radioterapia, todos os dias, durante dois meses; fiquei toda queimada. Não fiz a reconstrução e fiquei sem mama. Tenho uma cicatriz do tamanho de um pé no lugar da mama. Depois é a revolta e aceitação do corpo. Sentimo-nos um monstro quando nos olhamos ao espelho”, relata.
Sónia Lapa teve de reaprender a viver e conviver com o novo corpo. Continua a fazer hormonoterapia oral todos os dias, que lhe causa efeitos secundários como afrontamentos, alterações de humor que variam entre estados depressivos e eufóricos. As dores no corpo vão alternando até porque já tinha sido diagnosticada com fibromialgia. Desde os 14 anos que sofre da coluna e em alguns dias até a planta dos pés lhe dói. Por causa do esvaziamento axilar ficou com incapacidade no braço para toda a vida porque incha, uma vez que já não tem sistema linfático. Diariamente coloca uma luva elástica que apanha braço, dedos e mão para o inchaço não piorar e não pode carregar pesos.
“O que as pessoas vêem por fora não tem a ver com as cicatrizes que estão aqui dentro. É um processo doloroso a nível físico e psicológico. Façam tudo como os médicos mandarem: medicação e vigilância”, sublinha, lamentando ter que ter estado um ano à espera para ser operada no Hospital de Vila Franca de Xira, onde é seguida. “E agora estou aqui à espera, sem mama, sem saber o que fazer a seguir”.
Ouvir o corpo e ganhar novo olhar sobre a vida
Sónia Lapa é uma força da natureza e nunca se entregou à doença. Mas “não querer dar parte fraca tem o reverso, porque as pessoas esquecem depressa e pensam que já passou, mas isto é para toda a vida”. Durante o processo nunca recorreu a terapias alternativas nem a apoio psicológico. Apoiou-se nas “suas pessoas” e vai gerindo os momentos. No último ano começou a ter ataques de pânico e reconheceu que não estava bem. Procurou ajuda e hoje respira fundo, faz ginásio e massagens para relaxar.
“A face mais visível do cancro é quando se perde o cabelo mas o resto é silencioso e muito individual. Temos de ter quem nos ampare mas é um processo que temos de gerir e saber ir buscar força dentro de nós. A única certeza que comecei a ter é estar viva e fazer o que gosto para estar bem. E fazer teatro para mim é como pão para a boca”, refere a actriz que, desde o cancro, começou a olhar para a vida com outros olhos.
Continua a gerir pessoas, a fazer teatro, pinta, cuida da casa e da família. Passou a relativizar os problemas e a desacelerar. “Cuidado que o stress mata pessoas e dá cabo de nós. Nada é mais importante nesta vida que nós próprios. Cuidem do vosso corpo mas não olhem tanto da parte de fora. Olhem para dentro se estão bem e em paz. Não tenham vergonha e apalpem-se, cuidem-se, sem se tornarem egocêntricos”, finaliza.