Viver sem medo depois do cancro na infância e carregar um passado de cara alegre
Rita Merenda era criança quando enfrentou o cancro e, aos 45 anos, admite que ainda não é fácil falar da doença que deixou marcas também na sua família. Todos os anos em Portugal são diagnosticados cerca de 400 novos casos de cancros pediátricos, representando a primeira causa de morte por doença entre crianças e adolescentes. É por isso importante proteger os doentes, as suas famílias e os sobreviventes.
Rita Merenda era uma criança saudável, cheia de energia, com “muita vontade de viver e conhecer o mundo” até começar a sentir esse vigor, próprio da idade, a abandonar o seu pequeno corpo. A palidez e a falta de apetite levaram-na às análises que dariam o primeiro sinal de que algo no seu sangue não estava bem. Daí até ao Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa foi um estalar de dedos e, aos 11 anos, estava a ser diagnosticada com uma leucemia mieloblástica aguda. “Na altura não se falava muito da doença, nem da palavra cancro, muito menos associada a uma criança. Eu própria não sabia o que era o cancro”, conta.
Lembra-se de ver o pai chorar, “o que era raríssimo”, e apesar de ninguém lhe ter explicado de que doença padecia afinal, Rita percebeu que tinha de ser algo grave. Internada no IPO contou com o apoio incondicional dos pais sobretudo da mãe que não lhe largava a mão 24 horas por dia. “Abdicou de tudo, da vida toda, para me acompanhar”. Até do outro filho, o irmão mais velho de Rita que, durante demasiado tempo se viu privado da companhia materna. Veio a quimioterapia que a derrubou e a queda do seu “lindo cabelo liso” que nunca mais voltou a ser o mesmo. “E não, não é só cabelo. Tem uma grande implicação psicológica, principalmente quando se tem 11 anos”, diz. Ir para a escola de chapéu, a cobrir a cabeça calva, “foi das fases mais duras, a que mais chocou”, conta a O MIRANTE a sobrevivente natural de Vila Franca de Xira a propósito do Dia Internacional da Criança com Cancro que se assinala a 15 de Fevereiro.
Todos os anos são diagnosticados em Portugal cerca de 400 novos casos de cancros pediátricos que, apesar da taxa de sobrevivência ser de cerca de 80%, continuam a ser a primeira causa de morte por doença entre crianças e adolescentes. No caminho pela cura dos filhos “muitas pessoas perdem o emprego”, mas sobretudo muitas vêem diminuído o seu rendimento e acrescidas as despesas porque têm que se deslocar para tratamentos com os filhos durante bastante tempo e às vezes têm de manter duas casas”, referiu à Lusa, no âmbito da mesma data, a directora-geral da Acreditar - Associação de Pais e Amigos das Crianças com Cancro, Margarida Cruz.
Meio ano em Londres com a mãe
Foi nesse caminho sinuoso e de coragem pelas melhoras que Rita Merenda e a mãe se mudaram repentinamente para Londres, capital de Inglaterra, onde, em 1990, realizou um autotransplante de medula óssea, recurso terapêutico que à data não era realizado em Portugal. “Foi uma mãe que, mais uma vez, deixou tudo para trás para se mudar com a filha doente para um país estrangeiro quando nem a língua [inglesa] falava”, sublinha. De Junho a Novembro, durante a estadia na capital inglesa, Rita contava os segundos para voltar a estar com a família: “Não tinha medo de morrer, só de não voltar a ver o meu pai e irmão”.
Um ano de escola perdeu-se entre os tratamentos que, na opinião de Rita, eram demasiado agressivos para crianças, estando hoje “mais adequados”, embora, “ainda falte fazer muito neste campo”. Ficar longe dos colegas foi duro mas voltar foi ainda mais. As caras amigas já não estavam mais naquele recreio ou sala de aula pois tinham mudado de escola com a transição para o sétimo ano. Rita não, voltava à estaca onde tinha ficado, igualmente sem um fio de cabelo a cobrir-lhe a cabeça. Foi vítima de bullying numa altura em que a palavra ainda não fazia parte do vocabulário dos portugueses e num tempo em que “ninguém achava que uma criança pudesse ter cancro”.
“O cancro é uma nuvem que nunca sai de cima de nós”
Ser voluntária na pediatria do IPO de Lisboa, ainda que à segunda tentativa depois de uma primeira falhada quando tinha 20 anos, “dá um propósito” à doença que enfrentou e lhe deixou sequelas para a vida. Mas dessas prefere não falar para não roubar alento a quem a esteja a ler neste artigo. Decide-se por afirmar, convictamente, que não tem medo de voltar a enfrentar o cancro, a doença que a ensinou a “viver a vida todos os dias e a agradecer por estar cá”.
A chamada “cura oficial” de Rita Merenda chegou aos 17 anos, cinco anos depois de não haver vestígios de células cancerígenas no seu corpo. Não quer isso dizer que se tenha visto livre desse passado duro até porque “o cancro é uma nuvem que nunca sai de cima de nós”, afirma explicando que continua a fazer exames com regularidade tendo a sorte de ter sido tratada no IPO de Lisboa, o único centro de referência do país com consulta para sobreviventes de cancro pediátrico que terminaram o tratamento há mais de cinco anos.
Rita Merenda, assim como tantos outros representados pela associação Acreditar defende que deveria existir essa consulta em todos os centros de referência de oncologia pediátrica. A directora-geral da Acreditar, Margarida Cruz, disse à Lusa que em Lisboa está estabelecida a “Consulta dos Duros” para os doentes que ultrapassaram a realidade oncológica com sucesso. “Mas não temos isso no resto do país, a não ser em questões pontuais em que o médico tenha interesse num caso ou noutro e que queira segui-lo”, lamentou.
Doença manifesta-se em toda a família
Aqueles que enfrentam ou enfrentaram o cancro directa ou indirectamente compreendem verdadeiramente o significado da frase: quando uma criança tem cancro os pais têm cancro. Aos 45 anos Rita Merenda olha para trás e percebe-a também. “Sei que fui uma lutadora mas os meus pais foram excepcionais. Tenho um respeito tremendo por eles e pelos pais que passam por isso. São eles os verdadeiros heróis”, afirma a sobrevivente e voluntária na pediatria do IPO de Lisboa, defendendo que o acompanhamento psicológico deve abranger familiares de doentes e os sobreviventes de cancro.
Dos tempos em que era ela a estar ali, numa daquelas camas onde nenhuma criança deveria ter de se deitar, não se esquece das vezes em que “tentava ser forte” para que a sua mãe não se fosse abaixo. Mais de 30 anos passados esta memória é a base de uma das mensagens que tenta, hoje, transmitir aos pais: “Se os miúdos os vêem tristes vai ser mais difícil para eles. Por mais difícil que seja ponham um sorriso”, diz em jeito de conselho como se estivesse a dirigir-se aos pais. Depois, acrescenta a voluntária que também é mãe, “ter esperança, acreditar que a sobrevivência é possível é o mais importante”.