Sociedade | 19-03-2024 10:00

O trauma e a revolta que a ditadura deixou nas filhas e esposas de presos políticos

O trauma e a revolta que a ditadura deixou nas filhas e esposas de presos políticos
Foram várias as mulheres que contaram, durante a tertúlia "Filhas de Abril", que decorreu em Alpiarça, as suas memórias durante os anos de ditadura

Tertúlia “Filhas de Abril”, organizada pela Câmara de Alpiarça, juntou mulheres que foram filhas e esposas de presos políticos durante a ditadura. As participantes contaram as suas memórias desses tempos e das marcas que ficaram para a vida. Sessão decorreu no Dia Internacional da Mulher.

O pai de Herculana Velez era funcionário do Partido Comunista Português (PCP), que lutava por melhores condições salariais e de vida do povo em plena ditadura salazarista, entrou para a clandestinidade com a esposa e a filha, na altura com dois anos. Herculana Velez viveu nessas condições até aos oito anos e as memórias que guarda desses tempos foi de viver isolada e não ter amigos. A família andava sempre de terra em terra, sobretudo durante a noite, e vivia em casas arranjadas pelo partido. Os seus companheiros e amigos foram um coelho, um pintassilgo e um pinto. “Os animais foram os meus amigos porque não podia dar-me com outras crianças. Naquele tempo as crianças brincavam na rua e eu nem sequer podia ir para a janela para eles não me verem e não me convidarem para brincar com eles. Nessas alturas a minha mãe chamava-me para irmos brincar para o quintal”, recorda. Herculana Velez confessa que ainda hoje tem um trauma de solidão pelo facto de não ter tido amigos e ter de andar a mudar de terra em terra, sem nunca saber quando iria acontecer, e por ser sempre na escuridão da noite.
Herculana Velez foi uma das participantes na tertúlia “Filhas de Abril”, que decorreu na sexta-feira, 8 de Março, no pólo enoturístico da Casa-Museu dos Patudos. Durante o encontro algumas filhas e mulheres de antigos presos políticos, que lutaram contra a ditadura, contaram as suas experiências do tempo em que não havia liberdade, nem se podia ouvir música ou haver determinados livros em casa. Houve uma altura em que também a sua mãe foi presa durante cerca de um ano e teve que ir morar com uma tia que não conhecia. “Só conhecia a minha mãe e o meu pai. Quis ficar com ela na prisão mas a minha mãe não permitiu. Esta separação foi como uma morte para mim. Ainda hoje não consigo descrever a sensação de me retirarem de perto da minha mãe”, afirma.
Emília Piscalho, de Alpiarça, recorda a história do seu sogro e do seu marido, ambos já falecidos. O marido contou-lhe que quando o seu pai foi preso pela PIDE – polícia política do tempo da ditadura – ele tinha dois anos e estava ao colo do pai, que esteve preso seis anos. “O meu marido sempre teve uma revolta porque lembrava-se que a mãe não lhe podia comprar, por exemplo, um par de sapatos porque o pouco dinheiro que existia era para comprar os bilhetes para ir visitar o pai à prisão em Peniche”, recorda Emília Piscalho.

A dura separação da família
Maria de Lurdes Valverde e Marinela Valverde são irmãs e recordam a noite em que o pai foi preso. Maria de Lurdes foi a única que não acordou quando a polícia entrou em casa e no dia seguinte a realidade era diferente. O pai, que era o ganha-pão, não estava e a mãe só chorava. O irmão de 17 anos teve que deixar os estudos e ir trabalhar. As irmãs foram para casa de famílias [diferentes] para poderem terem comida. “Hoje entendo porque fui afastada da minha mãe mas durante muito tempo foi uma revolta muito grande ver-me naquela situação, até porque não me sentia bem-vinda por parte da família do meu pai, que me acolheu”, conta.
São vários os exemplos de traumas que a prisão dos pais ou dos maridos provocou nestas mulheres. Irene Candeias não se esquece de, numa visita à prisão, o marido lhe passar um papel com uma mensagem para entregar aos camaradas de partido, através de um beijo na boca. Ou Silvina Madalena que, ainda hoje, mais de meio século passado, não consegue ouvir o barulho das chaves a baterem umas nas outras porque lhe recordam quando ia visitar o pai à prisão e os guardas o levavam para a cela.

“Mulheres não podem perder direitos adquiridos”

A presidente da Câmara de Alpiarça, Sónia Sanfona (PS), aproveitou a sessão para, no Dia Internacional da Mulher, elogiar o papel das mulheres que contaram as suas histórias na tertúlia e afirmar que as mulheres são diferentes e que essa diferença é complementar e essencial à sociedade. “Direitos que fomos adquirindo não os podemos perder, porque se isso acontecer dificilmente os voltamos a conquistar. A mulher é o esteio da sociedade. Tem uma força e capacidade de sacrifício e as coisas funcionam muito com base na natureza da mulher”. A autarca deu o exemplo de França, que recentemente colocou na sua Constituição o direito ao aborto para explicar que Portugal ainda está “um bocado longe” do panorama de defesa dos direitos das mulheres em relação a outros países da União Europeia.

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