Médico palestiniano em Santarém tenta ajudar família na guerra
Médico palestiniano que trabalha no Hospital Distrital de Santarém luta contra o tempo para retirar a sua família da martirizada faixa de Gaza.
Yahia Abuowda vive em Portugal desde 2000 e começou a trabalhar em 2009. Dois anos depois escolheu o Hospital Distrital de Santarém para trabalhar. Quer retirar da Palestina os familiares que ficaram sem casa e estão refugiados em hospitais, mas isso custa uma pequena fortuna. “É muito triste não podermos viver em paz no nosso país”, lamenta.
Yahia Abuowda, de 41 anos, nasceu em Gaza, na Palestina, e desde criança que teve como objectivo deixar a sua terra, martirizada por consecutivos conflitos. Aos 18 anos conseguiu uma bolsa de estudo para estudar Medicina em Lisboa e nunca pensou regressar ao Médio Oriente. Agora criou uma campanha de angariação de fundos [Gofoundme] na Internet para retirar a família do país que desde Outubro é palco da guerra entre Israel e o Hamas. A mãe, duas irmãs, três irmãos e respectivas famílias viram as suas casas serem destruídas pelos bombardeamentos e sem condições de habitabilidade. Estão refugiados em hospitais em Gaza por causa de uma guerra que já matou cerca de 30 mil pessoas.
Médico de Medicina Interna no Hospital Distrital de Santarém, Yahia Abouwda, juntamente com três irmãos, que vivem na Alemanha, estão a lutar para retirarem os familiares para porto seguro. Yahia contactou o Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) português quando a guerra começou e a 13 de Novembro foram emitidos 27 salvo-condutos que abrangiam toda a família. Yahia não esconde a emoção que sentiu quando pensou que a situação seria resolvida com brevidade. Mas não foi isso que aconteceu. O MNE deixou de dar resposta aos contactos do médico até que o informou que o Governo português só poderia proceder à retirada de ascendentes e descendentes directos. Neste caso, só a sua mãe poderia sair. “A 13 de Dezembro disseram-me que tinha havido uma actualização no sistema e que a minha mãe não tinha sido autorizada a sair de Gaza pelo Governo israelita. Não entendo como é que isto pode acontecer”, lamenta em jeito de crítica.
O médico quis que a família saísse de lá assim que começou a guerra mas eles acharam que o conflito seria breve. A única solução para retirar a família de Gaza é pagar a uma empresa – que presta serviços de assistência à evacuação - que ajuda as pessoas a atravessarem a fronteira. Cobra cinco mil euros por adulto e 2.500 euros por criança. “Isso é só para passar a fronteira. Para depois chegarem ao Egipto é preciso mais dinheiro. Desde 7 de Outubro de 2023, quando rebentou a guerra, que eu e os meus irmãos já enviámos cerca de 20 mil euros para ajudar com alimentação e bens essenciais, pois está tudo muito caro porque é difícil encontrar as coisas essenciais”, explica a O MIRANTE.
Yahia conta que a sua mãe, de 69 anos, e com alguns problemas de saúde, não fala na falta de comida ou de medicamentos para não assustar os filhos, que vivem o conflito à distância. “A minha mãe diz só que o importante é sobreviver. Tinha familiares que eram obesos e agora estão magros. É muito complicado viver toda esta situação à distância. É uma impotência muito grande sentir que não conseguimos fazer nada para ajudar”, admite confessando que não vê televisão e tem dificuldades em dormir.
Os traumas causados pela violência
Yahia Abuowda viveu a sua infância e juventude numa das zonas do globo mais fustigadas pela violência bélica causada pelo antagonismo entre judeus e árabes. Ainda se assusta quando alguém bate à porta de repente porque era habitual baterem à porta de sua casa, de madrugada, entrarem, apontarem lanternas na sua cara para verificarem se havia activistas palestinianos ali escondidos. Todos esses traumas, que continuam presentes na sua memória, fizeram com que sempre quisesse deixar o seu país. Aconteceu aos 18 anos quando conseguiu uma bolsa para estudar Medicina em Portugal. Chegou sozinho e a adaptação foi feita aos poucos.
Vive em Portugal desde 2000 e começou a trabalhar em 2009. Dois anos depois escolheu o Hospital Distrital de Santarém para exercer medicina. “Não queria ficar em Lisboa por causa da confusão mas queria uma cidade perto de Lisboa e escolhi Santarém sem conhecer”, refere. Gosta da cidade por ser calma e as pessoas acolhedoras, além de ter uma boa qualidade de vida. O clima é semelhante e em Gaza também existem praias. “Culturalmente tem algumas diferenças, é normal. Por exemplo, lá cumprimentamos com dois beijinhos os homens e um aperto de mão as mulheres. Aqui é ao contrário. É uma questão de hábito”, afirma.
Em relação à comida sentiu alguma diferença ao início porque em Gaza utilizam mais especiarias e mais sal. Agora habituou-se e até estranha a comida da sua terra, conta com um sorriso. O médico lembra que o seu país, nas décadas de 80 e 90 do século passado, era evoluído e em casa já tinha energia solar. Além disso, a agricultura estava muito evoluída. “Com a guerra é que tudo se foi degradando”, diz.
A sua esposa é palestiniana apesar de ter nascido e crescido no Qatar. Conheceu-a em 2009 no casamento de um irmão de Yahia. Casaram em 2012, a última vez que esteve em Gaza, e vivem em Santarém com os dois filhos, de dez e três anos, que adoram Santarém. Yahia recorda quando regressou a Gaza, em 2002, e voltou a assustar-se com os bombardeamentos à noite, como quando era criança. “Já me tinha esquecido desse trauma e nessa altura voltou tudo de novo. É muito triste não podermos viver em paz no nosso país e termos que sair de lá para conseguirmos viver”, lamenta.