Ainda há quem chame cobarde e maricas a quem fugiu à Guerra Colonial
Carlos Neves e Fernando Cardoso contaram a sua história numa conversa à porta fechada sobre a Guerra Colonial Portuguesa destinada a alunos da Escola Básica e Secundária Dom Martinho Vaz de Castelo Branco, na Póvoa de Santa Iria.
Se fugir ao fascismo, à fome, analfabetismo, tortura, falta de liberdade, prisão, exploração e guerra faz de alguém traidor da Pátria então esses são bons motivos para o ser, falou-se num colóquio destinado a alunos sobre a Guerra Colonial realizada na Escola Básica e Secundária Dom Martinho Vaz de Castelo Branco, da Póvoa de Santa Iria, concelho de Vila Franca de Xira.
Os alunos ouviram dois rostos - Carlos Neves e Fernando Cardoso - dar o seu testemunho sobre como decidiram sair do Portugal da ditadura por recusarem fazer uma guerra de que discordavam e que aterrorizava a sua juventude. “Ainda hoje os desertores são considerados traidores à pátria. Eu assumo a minha condição de traidor à pátria, traidor à pátria do fascismo, da fome, do analfabetismo”, disse Fernando Cardoso, citado pela Lusa.
Já Carlos Neves foi mais longe recordando que o Governo os acusava de serem “medricas, cobardes e traidores” e que, 50 anos depois do 25 de Abril de 1974, essa narrativa se mantém válida para alguns. “Hoje este problema ainda não está resolvido. Para muita gente conservadora continuamos a ser traidores à pátria, à pátria deles”, afirmou. Para ele, os milhares de jovens que disseram não à guerra colonial foram uma “tropa sem farda e sem armas” cuja revolta também ajudou à revolução.
“Se um contigente em África era de 70 mil a 80 mil soldados, os 200 mil jovens desertores, refractários e faltosos chegavam para fazer mais dois contingentes de soldados para as frentes de batalha da guerra colonial. Estes milhares de jovens não podem ser descartados, ignorados, têm o seu lugar na luta contra o fascismo e o colonialismo, contribuíram para a revolta dos oficiais de carreira, saturados pelo excesso de comissões e por falta de efectivos”, testemunhou Carlos Neves.
“Vi jovens queimados, sem pernas nem braços”
A viver no bairro da Ajuda, em Lisboa, Carlos Neves medrou o ‘não à guerra’ na Igreja, entre os católicos progressistas, e decidiu sair definitivamente do país quando visitou um amigo ferido em Angola, no Hospital Militar da Estrela. “O que vi no hospital - ainda me arrepio - eram jovens queimados, sem pernas, sem braços, e comecei a pensar com os meus amigos como havia de resolver o problema e o problema era como sair do país”, contou, citado pela Lusa.
Foram dois amigos que trabalhavam na TAP que lhe sugeriram ir para a Holanda. Teve de pedir passaporte, o que o levou a ir à sede da polícia política PIDE contar a mentira de que a família lhe tinha oferecido a viagem por ter terminado o curso de serralheiro mecânico. Já Fernando Cardoso ainda foi à tropa, que fez no Algarve com um comandante que se gabava de em África se passear com crânios de africanos na frente do jipe, antes de desertar em 1970. Saiu de Portugal ‘a salto’ pela zona de Marvão,, numa fuga de carro com amigos para Paris. “Esta guerra não era minha, esta guerra eram pessoas que estavam a lutar pela sua liberdade e libertação. Primeiro, era a consciência da guerra e depois era como fazer guerra à guerra, o que implicava o exílio”, contou. Saiu de Portugal sem saber quando voltaria e se voltaria, admitindo que podia ser para toda a vida.
Ambos trabalharam nos empregos que davam aos imigrantes ilegais, em limpezas, fábricas e hotelaria. Ouviram a primeira notícia do golpe de Estado pela rádio e, em países diferentes e sem se conhecerem, desconfiaram dos militares de óculos escuros que depois viram na televisão e que lhes recordaram as juntas militares da América Latina, temendo que a revolta fosse tomada pela ultra direita. O regresso a Portugal, com a “mala cheia de sonhos e de esperança”, surpreendeu-os. Tinham saído de um país cinzento, retrógrado, repressivo e regressavam a uma festa.
“Portugal explodiu de afectos, de criatividade, de amor. Cheguei a Lisboa e fiquei espantado, era uma cidade em efervescência. Paris passou a ser uma cidade velha. Portugal foi um laboratório de criatividade durante dois anos”, recordou Fernando Cardoso.