Natércia Salgueiro Maia conta como viveu a madrugada da revolução
Viúva do capitão Salgueiro Maia viu sair de Santarém, na madrugada de 25 de Abril de 1974, a coluna militar da Escola Prática de Cavalaria que teve papel decisivo no derrube do antigo regime. Foi à distância que Natércia Maia aguardou pelo resultado da acção dos militares.
Natércia Salgueiro Maia viu sair de Santarém a coluna militar em que seguia o marido, na madrugada de 25 de Abril de 1974, pelos “buraquinhos do estore”, para não atrair a atenção da PIDE. No prédio onde vivia com Fernando Salgueiro Maia, em 1974, moravam mais dois capitães, pelo que a presença de um agente da polícia política era constante na rua.
“Lá no prédio vivia mais um capitão que também saiu, que ocupou o Banco de Portugal, e havia outro, mas que por acaso nessa altura estava em Angola. E então, havia sempre um PIDE lá na rua e, portanto, eu não subi o estore, espreitei pelos buraquinhos para ver a avenida”, contou à agência Lusa a mulher que casou com Salgueiro Maia em 1970 e que o acompanhou até à morte prematura, em 1992.
Natércia Salgueiro Maia, que não gosta de dar entrevistas, aceitou receber a Lusa na casa que construiu com o Capitão de Abril nos arredores de Santarém para reconstituir a forma como viveu os dias da revolução, dos quais guarda muitas memórias, recortes de jornais, revistas, livros, retratos. O sótão, forrado a estantes, é o local de eleição para guardar “as coisas do 25 de Abril”.
Salgueiro Maia falava pouco de trabalho e de política em casa, excepto em reuniões de amigos chegados ou familiares próximos, em que era comum defender: “Isto tem de mudar”. “Já tinha havido tentativas, não é? Só realmente as Forças Armadas ou o Exército é que podiam, talvez, dar a volta à situação (…) De resto, eu sabia que havia de acontecer qualquer coisa”, assumiu Natércia Maia. “No dia 23, ele recebeu um telefonema e foi encontrar-se com um militar, acho eu, com certeza que era um militar, e disse-me ´Se calhar é hoje´. Depois veio para casa. Não era ainda naquele dia”, sorriu.
“Pode ser hoje!”
Natércia Salgueiro Maia estava a par das reuniões do marido. Por vezes acompanhava-o até Lisboa para dar uma volta pela capital, enquanto o capitão se reunia com outros militares envolvidos no golpe de Estado que derrubou a ditadura há 50 anos. No dia 24 de Abril de 1974, Salgueiro Maia avisara a mulher para ficar atenta às músicas que, na rádio, serviriam de senha para a revolução (E Depois do Adeus e Grândola, vila morena). E disse-lhe – “Pode ser hoje”.
“Depois quando ouvi, aguentei até vê-los passar”, recordou Natércia Maia: “Devo ter-lhe desejado boa sorte, aquilo podia correr mal!”. Apesar de desconhecer os pormenores do plano, sabia que o marido seguia naquela coluna que saiu de Santarém rumo a Lisboa, até porque era ele “o responsável pelos carros de combate”.
Reparou também que Salgueiro Maia, que apenas fumava em ocasiões especiais, colocara cigarrilhas no saco, antes de sair de casa para a Escola Prática de Cavalaria, no dia 24 de Abril. “Aquilo já era ele a pensar em comemorar. Não é que me tivesse dito, as coisas são óbvias, tínhamos esta forma de estar, não era preciso estar a dizer tudo”, afirmou.
Entre o segredo da revolução e a atenção devida a uma visita
Naquela noite, Natércia Maia, professora de matemática, viveu entre o segredo da revolução e a atenção devida a uma visita que recebeu em casa e que nada sabia, mas que estranhava o comportamento da anfitriã, conforme lhe confessou mais tarde, uma amiga que encontrara na rua e que convidara a subir, por cortesia. Natércia dividia-se entre a sala, onde estava a colega, e a emissão do rádio, na cozinha. “Era só uma paredezinha, portanto eu andava sempre assim” [à escuta, simulou]. O telefone tocava e Natércia Salgueiro Maia não atendia, com receio de que fosse alguém a fazer perguntas às quais não poderia responder, o que – num tempo em que imperava a figura do chefe de família - levou a amiga a pensar que talvez o marido não a deixasse atender telefonemas.
“Já tinha havido o 16 de Março [sublevação de militares das Caldas da Rainha que foi abortada], em que me ligaram para casa a perguntar o que se passava com a Escola Prática, que as forças do Norte já vinham a caminho. Eu disse que não sabia, que ligassem para a Escola Prática, quem era eu para dizer o que se passava?”, lembrou, classificando o episódio como “uma barraca”.
Com a revolução em curso, e depois do esforço para nada deixar transparecer, Natércia adormeceu momentaneamente e acordou, em sobressalto, com o comunicado do Movimento das Forças Armadas (MFA), justamente na parte final em que se fazia um apelo aos médicos para se dirigirem aos hospitais. “Pensei: está a correr mal. Só depois é que percebi que era uma medida preventiva”.
“Nessas situações mantenho-me sempre muito calma e serena, pelo menos aparentemente, só que interiormente deve haver um grande desgaste. De maneira que encostei-me um bocadinho e passei pelas brasas [risos]. Até tenho vergonha de dizer isto, pode ser mal interpretado, mas foi o que aconteceu”, admitiu, reconhecendo que acordou “escandalizada” com a sua situação.
“Para ele nunca havia obstáculos”
Tentou fazer a vida normal, tal como havia conversado com o marido e dirigiu-se ao liceu, onde dava aulas. “Nem chegámos a entrar, o senhor reitor disse que tinha recebido ordens para fechar a escola”, contou. Ao regressar a casa, ligou a televisão que apenas transmitia música. “Depois, quando apareceu a imagem já o meu marido estava no Carmo. E lembro-me de ter dito: Tinha de ser!”, precisou, ao evocar a personalidade de Salgueiro Maia: “Era uma pessoa cheia de energia, decidido. Para ele nunca havia obstáculos, tentava sempre encontrar uma solução, tirando a doença. Era o que ele dizia, a única coisa que não conseguiu resolver foi a doença”.
Foi à distância que aguardou pelo resultado do desempenho de Salgueiro Maia e dos outros militares. “Aquele bocadinho também foi muito preocupante, demorou algum tempo até a situação ser resolvida no Carmo. Podia não correr bem”, admitiu. Conseguida a rendição do regime, Salgueiro Maia ficou em Lisboa mais uns dias. Reencontraram-se no dia 26 de Abril, junto ao Regimento de Cavalaria 7, na Ajuda, onde Natércia se deslocou com uma amiga, também casada com um militar. “Abraçamo-nos. Lembro-me que passou um camionista e que o camionista também estava muito feliz”, recordou.