As memórias de quem viveu na pele o sofrimento dos avieiros do Tejo
Cacilda Guerra Vieira mantém vivas as histórias da dureza da pesca no Tejo, que lhe levou o seu irmão com três anos de idade. A avieira lembrou a vida de sofrimento quando esperava no cais da Vala de Azambuja pela chegada dos barcos varinos do Cruzeiro Religioso e Cultural do Tejo.
Cacilda Guerra Vieira, de 78 anos, é o rosto da vida dura dos avieiros e da pesca no Tejo, quando está à espera dos barcos varinos do Cruzeiro Religioso e Cultural do Tejo, em honra da devoção a Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo, que chegou a Azambuja no sábado, dia 8. A segunda de dez irmãos recorda no cais da Vala de Azambuja a perda de um deles, com apenas 3 anos. Morreu engolido pelas águas de um rio agitado em Alhandra. “Nesse dia o meu pai deu uma tareia à minha mãe e o menino bateu ao meu pai. O pior veio depois. Ele chegou à borda de água… a nortada sentia-se de tal forma que o barco batia nas pedras e o menino dizia para a minha mãe que queria ir lá para fora. Ela respondeu-lhe que não porque as ondas o levavam. Mas ele saltou e foi levado pelo rio. Apareceu morto a boiar”,
Não distante do rio, a mãe de Cacilda aviava-se em Salvaterra de Magos. Num dos dias havia vacas bravas e ela, grávida de seis meses, teve que saltar para um salgueiro porque um dos animais correu atrás dela. Assustou-se muito e perdeu a menina”, lamenta. “Tudo é duro do princípio ao fim”, recorda a septuagenária que morava no Porto da Palha. Lá nasceu e viveu até aos 27 anos quando emigrou para o Luxemburgo. Do seu álbum de memórias partilha as agruras de uma vida de esforço para subsistir. “A minha mãe teve dez filhos e lembro-me de passar tanta fome, de estar a dormir com as minhas irmãs e de acordarmos molhadas com a chuva em cima de nós. Sofremos muito e a vida do pescador é quase sempre amargurada”, relembra.
Hoje os pescadores andam sozinhos, sem as mulheres nos barcos, porque antigamente era a família inteira. “A minha mãe chegou a ter seis filhos nos barcos a dormir como os ratos, somente um ou dois dormiam com a mãe e com o pai”, conta. Cacilda Vieira lamenta que reste cada vez menos gente na pesca, porque os mais novos não querem nada disto. “Antigamente não se via um filho de um pescador empregado, hoje vê-se. Naquela altura iam sempre para a pesca e agora só se vêem os velhos. Os mais novos andam pelas fábricas e noutros lados. Fazem bem, é uma vida muito dura”, conclui.
Regressada ao Ribatejo há já três décadas, Cacilda Vieira refere que “viver este dia é, ainda assim, a maior alegria do mundo” e adorava que esta homenagem se fizesse no seu tempo. Antes de iniciar a procissão em terra, a avieira deixa ainda uma nota de detalhe para o próximo ano. “Esta vala antigamente estava mais limpa, tinha enguias e barbos. Agora está cheia de lixo”, criticou.
Quem também mantém a devoção a Nossa Senhora dos Avieiros e do Tejo são as adolescentes Maria Clara Messias e Margarida Franco, saem dos barcos e formam fila para receber a santa com flores e dizeres. Longe de sofrerem na pele o sofrimento das gerações anteriores, reconhecem tratar-se de uma tradição “divertida” em comunhão com Nossa Senhora dos Avieiros, mesmo que isso implique deixar “as tecnologias de lado” por um dia. E dizem que vão ouvindo em casa as histórias de tempos muito difíceis. Liliana Cristino, que traz pela mão o filho Martim Fajardo, não perde o cruzeiro religioso e cultural porque é preciso manter a tradição, sendo que é também uma oportunidade de ver pessoas que não vê ao longo do ano.
Para Liliana Cristino, o acto de vestir o traje para cumprir a tradição, assim como a dedicação e a harmonia das gentes “tem um significado muito grande”. Questionada sobre as principais dificuldades sentidas no rio, Liliana Cristino foi peremptória: “não choveu, o rio Tejo não mostrou quaisquer contrariedades ao longo do percurso, pois havia bastante água e não nos deparámos com plantas invasoras”.
Este ano outra particularidade do evento foi o facto de cinco elementos do recém-criado Clube Náutico da Azambuja efectuarem, pela primeira vez, uma recepção de boas-vindas à Santa e a quem integrou o evento com caiaques.