Caminhos milenares vedados com correntes revoltam população de Torres Novas
Os residentes em Casais Sebes, Gateiras e Valhelhas não se conformam com a proibição de aceder a duas estradas que, desde há vários séculos, são usadas pela população para chegar a Torres Novas. Presidente da câmara promete esclarecer a situação junto dos novos proprietários, que querem transformar a Quinta do Marquês num hotel de luxo.
“Quantos mais formos melhor”, afirma Helena Ribeiro a O MIRANTE, enquanto chegam, a conta-gotas, alguns dos residentes das aldeias de Casais Sebes, Gateiras e Valhelhas. O local combinado foi o início da estrada romana, uma das duas vias de acesso a Torres Novas que, há duas semanas, foi cortada pelos novos proprietários da Quinta do Marquês, também chamada de Quinta da Torre de Santo António. Para além desta, chamada assim por aí ter existido uma ponte dos tempos do Império Romano, existe uma outra que passa mesmo pelo meio da quinta e cuja passagem também foi vedada. “As duas estradas sempre foram públicas e não aceitamos que deixem de ser”, afirma, sem hesitar, uma das residentes locais que se juntou ao grupo de protesto.
A indignação é grande. Uma corrente com uma placa a dizer propriedade privada marca agora o início de uma bonita estrada de terra batida, ladeada de árvores e terrenos com oliveiras. As duas estradas sempre foram usadas pela população para chegar à cidade, situada a cerca de três quilómetros de distância. “Era por aqui que eu ia para a escola todos os dias. Demorava cerca de 45 minutos a pé”, conta Fernando Graça, que há 48 anos casou precisamente na capela pertencente à propriedade. Na altura, a Quinta do Marquês pertencia ao Conde de Foz que autorizou a cerimónia. O sumptuoso palácio do século XIX, classificado como património cultural, passou por muitas mãos até ser recentemente comprado por investidores para, segundo informação que circula, o transformar numa unidade hoteleira de luxo. “Ao longo dos tempos, tentaram por três vezes cortar-nos o acesso a estas estradas, mas nunca conseguiram. E também não o vão conseguir agora”, assegura Fernando Graça.
A população não vai deixar de manifestar a sua indignação enquanto não conseguir o seu objectivo, que é voltar a poder passear tanto na estrada romana como na que passa no interior da propriedade. “Percebemos que não queiram carros a passar, mas não nos podem proibir de caminhar por estradas que são públicas desde há dois mil anos”, afirma Margarida Manteiga, que tem sido a porta-voz dos moradores.
A contestação já chegou ao presidente da Câmara Municipal de Torres Novas. Pedro Ferreira mostrou-se solidário e prometeu averiguar o que se passa e quais os planos dos novos proprietários para a quinta, que fez parte dos activos tóxicos do BPN e nos últimos anos ficou devoluta. “A Quinta do Marquês, faz parte da história de Torres Novas há muitos anos. Sempre foi um espaço com possibilidade de passagem. A população habituou-se a utilizar muito aqueles caminhos”, afirmou o autarca em declarações à Lusa. Pedro Ferreira disse ainda desconhecer “as intenções dos actuais proprietários”, mas que, “para lá da intenção, há o direito público, ou não, de utilização daqueles caminhos”. “Estamos a averiguar para rapidamente tomarmos uma posição. Vai tudo certamente correr bem. Sou optimista por natureza e quero acreditar que o bom senso e a força da lei também ajudam a resolver as coisas”, acrescentou, adiantando estar já à espera de reunir com os recentes compradores.
Apesar das correntes a vedar o acesso ao caminho, o grupo de moradores percorreu com O MIRANTE uma pequena parte da estrada romana para mostrar o agradável trilho que tanto querem de volta.
À venda por quase sete milhões de euros
Em 2022, a aristocrata Quinta do Marquês estava à venda por 6,5 milhões de euros. Nessa altura, o popular site de mercado imobiliário “Idealista” avançava ter para propriedade um projecto aprovado para a construção, na sua área urbana, de um hotel de luxo com 141 quartos e 38 apartamentos. Na Sothebys, outra agência imobiliária, pediram sete milhões pela sua compra. Em Maio de 2023, continuava à venda, desta vez por 5,5 milhões de euros, segundo um anúncio da Remax Collection Siimgroup. Apesar dos preços elevados dos últimos anos, de acordo com Margarida Manteiga a quinta começou por estar à venda por um milhão de euros, nada comparável com o valor pelo qual foi recentemente comprado.
O palácio do século XIX, que tanto está a dar que falar, é de estilo neo-manuelino, com pormenores arquitectónicos e decorativos de grande riqueza, tem 900 metros quadrados de edificação, dez divisões, jardins geometricamente desenhados, uma piscina, lagos, vários estábulos, adega, uma igreja, tudo inserido numa herdade de 60 hectares.
Pandemia encheu os caminhos
Actualmente a estrada romana serve, acima de tudo, para caminhadas. Durante a pandemia, a estrada de terra batida foi determinante para os residentes de Casais Sebes, Gateiras e Valhelhas manterem a sua saúde física e mental. “Nunca se passou aqui tanto como na pandemia. Foi o nosso pulmão nos tempos de clausura. Dávamos passeios em família para respirar um pouco e não estarmos fechados em gaiolas, como as pessoas da cidade”, contou Susana Canais.