Sociedade | 17-07-2024 15:00

Albertina Roque cozinha, passa a ferro e vai ao supermercado aos 100 anos

Albertina Roque cozinha, passa a ferro e vai ao supermercado aos 100 anos
Albertina Roque casou com António Barreto, irmão do falecido bandarilheiro Manuel Barreto

Albertina Maria Roque, a residir numa residência assistida na Misericórdia da Golegã, viveu uma vida de sacrifício e de trabalho, que começou ainda na infância, nos campos agrícolas. Com 10 anos cuidava de três irmãos e mais tarde tomou conta dos pais e da sogra. Autónoma e bem-disposta, recebeu-nos cheia de vida a um dia de comemorar os 100 anos.

Albertina Maria Roque é a utente mais idosa a viver numa residência assistida na Santa Casa da Misericórdia da Golegã e a segunda mais idosa da instituição. Comemorou 100 anos no sábado, 6 de Julho, com uma festa surpresa preparada pela Misericórdia e no dia anterior conversou com O MIRANTE sobre a sua vida de sacrifício. Revelou-nos que ainda cozinha, estende, lava e passa a ferro a sua roupa, cose à máquina, vai ao supermercado e faz a cama. O conselho que dá aos jovens é de pouparem para conseguirem ter as suas coisas e, na melhor das hipóteses, uma velhice tranquila como a sua.
“Se soubesse a minha vida...”, suspira Albertina Roque em conversa com O MIRANTE. Aos seis anos já apanhava tomate ao lado da mãe. Foi para a escola aos sete e queria ter feito o exame da quarta classe, mas teve de cuidar de três dos cinco irmãos mais novos para os pais garantirem o sustento da família. Trabalhou no campo por conta de patrões até se casar aos 20 anos e ao domingo ia para as searas de tomate e para a vinha do pai. Albertina Roque e António Barreto, seis anos e meio mais velho, conheceram-se a trabalhar, mas foi quando o homem veio da tropa em Cabo Verde que o sentimento floresceu, quando tinha 17 anos.
António Barreto pediu autorização aos sogros para namorar Albertina e o amor durou 70 anos, até o marido partir há quase dez anos. Não quiseram filhos porque “as vidas eram ruins e com filhos era pior”. Assim é que equilibraram a vida, explica, e conseguiram, quando António Barreto fez 86 anos, comprar a residência na Misericórdia da Golegã. Viveram na Rua Dr. Branco, na Golegã e venderam no mercado de Torres Novas durante 25 anos.
Albertina Roque ainda se lembra do lanche que preparou para o marido quando fez 90 anos. António Barreto era um homem calmo, bem-educado, boa pessoa e sempre foi aceite pelos pais de Albertina. Não gostava de comemorar o aniversário e Albertina também só começou a comemorá-lo quando entrou para a Misericórdia. Foi já tarde que começou a viver, a passear e é difícil lembrar-se de algo que gostaria de reviver ou de momentos felizes, porque viveu para o trabalho e a cuidar dos seus, deixando-se para segundo plano.
A centenária acha que “não andamos nesta vida por acaso” e que o segredo da sua vitalidade poderá ser o seu caminho em “linha recta” sem prejudicar os outros e talvez uma retribuição por a certa altura ter cuidado dos pais - da mãe, principalmente, que esteve acamada seis anos -, da sogra e mais tarde ter estado ao lado do marido das diversas vezes que foi operado. Não tem arrependimentos nem deve um pedido de desculpas, mas sente que alguém lhe deve a si. A morte não a atormenta, perdeu uma irmã nova e lembra que chega a novos e a velhos. Tem uma irmã na Golegã com quem não tem ligação e um irmão em Lisboa.

Apaixonada por cavalos e toiros
Albertina Roque não tem saído de casa ultimamente devido a alguns episódios de tensão alta, só para ir às compras à quarta-feira acompanhada de uma funcionária da instituição e da sua bengala. É quem coloca as compras no carrinho de compras e faz as contas na hora do pagamento. A sua idade é motivo de brincadeira no supermercado porque ninguém acredita que tem 100 anos. O dinheiro é um dos problemas para que hoje as relações não durem, refere Albertina Roque, “porque há quem seja mais poupado e é difícil pagar as rendas ou comprar casa”.
Quanto às maiores mudanças que viu na vida, diria que foi em termos tecnológicos e não acreditou quando o irmão lhe disse que existia uma “caixa” (televisão) que mostrava pessoas que estavam em Lisboa e surpreende-se com o facto de que se necessitar de ajuda basta levantar o telefone que tem no quarto para chamar uma funcionária. Cresceu a comer sopa de couves com feijão quase toda a semana e ao domingo era uma alegria porque a mãe matava uma galinha ou um coelho e fazia uma comida diferente acompanhada de arroz ou massa. Albertina Roque costuma cozinhar na sua residência massada de bacalhau e sopa de batata com tomate. Quando não apetece cozinhar, a Misericórdia fornece as refeições. É apaixonada por cavalos e toiros, muito por culpa de o marido ser irmão do falecido bandarilheiro Manuel Barreto, e bordou à máquina a capa das almofadas e do sofá com flores e cavalos.

José Godinho Lopes

Fazer o bem sem olhar a quem

A Misericórdia da Golegã está a apoiar cerca de 300 pessoas. Segundo o site oficial da instituição, as respostas sociais são a Estrutura Residencial para Pessoas Idosas (ERPI) Rodrigo da Cunha Franco, para 52 utentes; a ERPI Dr. Francisco Mendes Brito e Centro de Acolhimento Temporário de Emergência para Idosos (CATEI), para 28 pessoas; o Centro de Férias para Seniores Comendador António José Martins Lopes, com capacidade para 20 pessoas; o Aldeamento Nossa Senhora das Misericórdias Sénior Residence, com 24 residências assistidas; serviço de apoio domiciliário; Centro de Dia; Academia Sénior; gabinete de acção social; cantina social; e serviços de saúde e animação/socialização.
O reconduzido Provedor da Misericórdia, José Godinho Lopes, refere a O MIRANTE que a missão da instituição é garantir a justiça social – “não discriminar em função da condição social e económica” – e integrar os utentes nas respostas em função daquilo que é a avaliação feita pelas técnicas. José Lopes admite que a instituição não está a conseguir dar resposta a todos os que a procuram. As pessoas estão a viver muito mais e não são autónomas, existindo cada vez mais demências que necessitam de acompanhamento específico. A Misericórdia da Golegã encontra-se ainda a recuperar da perda de rendimentos e acréscimo de gastos no período da Covid-19, depois de um rombo financeiro na ordem dos 300 mil euros. Para José Lopes, esta é a prioridade para se continuar a manter a qualidade dos serviços.

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