Zé do Barrete vai pedalar no dia em que comemora 90 anos
José Rafael de Oliveira vai fazer 90 anos e há 80 que anda de bicicleta, com a particularidade de levar sempre um barrete de campino na cabeça.
Zé do Barrete, como é conhecido, ainda trabalha como mecânico na garagem onde, no primeiro andar, tem um museu. Vive em Salvaterra de Magos com a esposa e este pode ser o seu último ano a pedalar por causa das pernas.
Este pode ser o último ano em que José Rafael de Oliveira, 89 anos, natural de Salvaterra de Magos, vai pedalar com o seu barrete de campino na cabeça. Zé do Barrete, como é conhecido, já não consegue “apanhar os homens da frente” e afirma que o inimigo número um do ciclista é a saturação. Anda de bicicleta há 80 anos e pedala aos domingos pelo Núcleo de Cicloturismo “Os Cansados” de Marinhais, empurrado nas subidas mais íngremes pelos colegas. No sábado, 27 de Julho, comemora 90 anos com um passeio do Dia dos Avós para incentivar as crianças a andar de bicicleta, na esperança de que o ciclismo no concelho não acabe.
José Rafael trabalhou toda a vida e continua a trabalhar porque aufere uma reforma de 350 euros. Filho de marinheiro, trabalhou em criança na Vala Real de Salvaterra de Magos, quando esta era um dos mais importantes entrepostos comerciais do sul do país, onde embarcavam e chegavam todos os tipos de mercadorias para Lisboa. Com sete anos corria atrás dos bois que puxavam a charrua que lavrava a terra. As alpercatas duravam-lhe três horas nos pés e acabava por fazer o trabalho descalço. Com 20 anos começou a trabalhar na garagem da Raret a lavar carros e há mais de 50 anos que tem a sua própria garagem.
Há 53 anos casou com Filomena Ramalho, 17 anos mais nova, depois de ficar viúvo. Conheceram-se em Benavente quando Filomena estava a aprender costura em casa da companheira de um amigo de José Rafael e lhe abriu a porta. José Rafael tem cinco filhos, sete netos e quatro bisnetos. Continua a ser mecânico, conduz, mas não se aventura em trabalhos complexos porque já vê mal.
Foi para a escola em 1942 e tem a quarta classe “mal tirada” porque andava sempre a fugir à escola. Tirou a carta de navegação em 1950, de bicicleta em 53 e de condução automóvel em 59. Órfão de pai e mãe aos sete anos, ficou a cargo dos irmãos e lembra-se de ir para a porta da padaria às quatro da manhã para apanhar “um bocadinho de pão”. A mãe faleceu durante um parto e o pai foi-se abaixo e agarrou-se ao álcool. Dos sete irmãos tem uma irmã com quase 90 anos. Aprendeu a andar de bicicleta sozinho, a cair e levantar-se, e há meia dúzia de anos esteve às portas da morte depois de uma colisão com um carro em Samora Correia. Não levava capacete e ficou com sequelas no ombro e pouca força no braço direito. “Vamos com aquela cegueira de ver o caminho e não vemos os obstáculos”, justifica.
A primeira prova oficial em que participou foi em 1954, da Avenida da Igreja, em Lisboa, a Benavente. São 80 anos de cicloturismo representados no museu que construiu no primeiro andar da sua garagem. A entrada enche-se de fotografias da história de Salvaterra de Magos e suas gentes e faz ligação a uma sala com dezenas de taças, medalhas, molduras, emblemas de municípios, pratos, bonés e t-shirts que preserva em sacos de plástico.
Tenta lembrar-se de tudo e limpa o pó com os dedos para ver as letras que avivam a memória. Numa das fotografias aparece sentado num banco – estão a cortar-lhe o cabelo e a barba como penalização por dois cartões amarelos numa das 10 voltas a Portugal em cicloturismo em que participou. Mas a alcunha de Zé do Barrete vem mais tarde, na década de 80 no primeiro Caldas-Badajoz, quando pediu a um vizinho para o acompanhar no carro de apoio e o mesmo referiu que é difícil reconhecê-lo entre milhares de ciclistas. “Não há problema, eu levo um barrete e sabes logo que o gajo do barrete sou eu”, disse.
Este ano já esteve duas vezes em provas na Chamusca e uma na Golegã, mas a melhor prova é em Vale de Figueira, diz – percorrem 25 quilómetros e param cinco vezes para “comer e beber” sem pagar. José Rafael tem duas bicicletas, uma para treinos e outra para provas. Nutre carinho pelos adversários que o ajudam e lamenta a falta de “capricho” dos tempos actuais, uma vez que nem os netos conseguiu pôr a andar de bicicleta.
A energia de “Os Cansados” de Marinhais
João Filipe, 72 anos, é presidente de “Os Cansados” de Marinhais, secção da Associação de Formação Cultural da Juventude de Marinhais (Juvemar), desde que a associação foi fundada há 25 anos. O núcleo de cicloturismo é composto por uma dúzia 12 ciclistas, a maioria na casa dos 70 e 80 anos, que se levantam aos domingos às seis da manhã para passear de bicicleta.
“As associações têm os elementos, mas falta o combustível. Criar incentivos para que entre a juventude que se lançou de cabeça aos telemóveis”, desabafa João Filipe, revelando que o seu cargo está à disposição e que estão dispostos a colaborar e ir às escolas ensinar a andar de bicicleta ou dinamizar aulas sobre cicloturismo. Começou a andar de bicicleta aos cinco anos, trabalhou na Marinha, nos submarinos, e esteve seis anos embarcado. Praticou atletismo e BTT e ao mesmo tempo criava a sua micro-empresa de refrigeração e ar condicionado, onde ainda trabalha.
“Os Cansados” já foram a Espanha, Holanda e Açores. Um episódio caricato aconteceu durante a pandemia, quando um elemento se esqueceu de colocar a tampa da água na carrinha e ao chegarem a Riachos, vindos de Fátima, a carrinha entrou em chamas e tiveram de chamar um táxi para cada um. No passeio que assinalou o 25º aniversário reuniram 180 ciclistas de vários pontos do país e José Rafael, além de participar nos cerca de 62 quilómetros, tem o hábito de vestir o seu fato de gala e servir às mesas.
A associação vai participar nas Festas de Marinhais com uma tasquinha de 1 a 5 de Agosto, o que só é possível graças às 40 pessoas que se voluntariaram para trabalhar. Após pagarem o espaço e aos fornecedores, o dinheiro será distribuído por associações. No último Natal, “Os Cansados” entregaram 40 cabazes de alimentos a famílias carenciadas.