Sociedade | 18-08-2024 07:00

A Cimianto é como um urso adormecido: não morde se não o acordarmos

A Cimianto é como um urso adormecido: não morde se não o acordarmos
TEXTO COMPLETO DA EDIÇÃO SEMANAL
Carmen Lima é presidente e fundadora da Associação SOS Amianto, especialista em sustentabilidade, doutorada em engenharia do ambiente, investigadora na área do amianto e conselheira no Conselho Económico e Social (CES)

A presidente da associação SOS Amianto, Carmen Lima, considera que o desmantelamento da fábrica de fibrocimento da Cimianto, em Alhandra, constituiu um crime ambiental que passou impune. E alerta para o perigo latente que envolve as antigas instalações industriais, que não devem ser usadas para nenhuma actividade.

A forma como há uma década foi desmantelado o que restava da falida Cimianto, fábrica de produção de materiais de fibrocimento em Alhandra, concelho de Vila Franca de Xira, foi um crime ambiental de proporções gravíssimas que lesou centenas senão milhares de pessoas que vivem perto da fábrica e os responsáveis ficaram impunes. Os equipamentos da fábrica foram removidos e vendidos para sucata sem que tivesse sido acautelada a saúde pública, alerta a O MIRANTE a presidente da associação SOS Amianto, Carmen Lima.
“Houve um crime ambiental de grande responsabilidade perante a população. Foi uma grande asneira que ali fizeram e não se pode alegar desconhecimento. A fábrica entrou em insolvência porque foi proibido o uso do amianto, por comportar elevados riscos para a saúde”, avisa a responsável. Para Carmen Lima, alguém ter entrado numa instalação que usou amianto em estado puro como matéria-prima e retirar tudo o que lá existia sem ter protegido a saúde dos trabalhadores e da população das proximidades foi grave.
E as consequências para a saúde, avisa Carmen Lima, podem chegar só daqui a duas décadas, nomeadamente o cancro da pleura do pulmão. “As fibras de amianto não são como a legionella, em que os sintomas aparecem poucos dias depois. No amianto os sintomas demoram anos a manifestar-se. Há pessoas a adoecer trinta anos depois da exposição às fibras, sobretudo exposições curtas mas intensas. Nessa altura provocou-se uma grande libertação de fibras para o ar sem qualquer análise dos efeitos que geraram e milhares de pessoas foram expostas”, alerta ao nosso jornal.

Não tocar nem chegar perto
No mês passado assinalaram-se doze anos desde que a Cimianto fechou portas. Hoje as instalações da antiga fábrica são propriedade de um empresário de Arruda dos Vinhos que as comprou em leilão por um valor a rondar um milhão de euros, montante que vai servir para acertar contas com a massa insolvente da Cimianto (ver caixa). Na altura da compra do espaço, Carmen Lima foi uma das pessoas que realizou a avaliação ambiental.
A responsável garante que a Cimianto é hoje como um “urso adormecido”: não morde se não o acordarmos. Avisa, contudo, que é altamente perigoso entrar na fábrica. “Está fechada, o acesso está interditado e não deve ser usado para nenhuma actividade como se vê na Internet, de pessoas que entram para tirar fotos a fábricas abandonadas sem ter noção do risco que estão a correr, ou miúdos que possam ir para lá brincar e respirar o que lá existe. Este urso não deve ser acordado”, avisa. Na prática, é como se o espaço fosse radioactivo: não tocar nem chegar perto até que seja descontaminado. O passivo ambiental ali existente é, segundo a responsável, muito elevado. E terá de ser olhado com cuidado por quem vai realizar a duplicação da Linha do Norte naquele troço.
“Deve ser tida em consideração qual a melhor solução para proteger a população. Às vezes o melhor é selar para que não haja possibilidade de libertação das fibras. É preferível não mexer do que mexer mal. Confinar o local”, avisa.
O MIRANTE contactou a Agência Portuguesa do Ambiente e a Inspecção-Geral da Agricultura, Mar, Ambiente e Ordenamento do Território sobre este assunto. A APA explica que não é a entidade responsável pelo acompanhamento da instalação e remete responsabilidades da fiscalização para o IGAMAOT, do qual não recebemos resposta até à data de fecho desta edição.

Luís Santos trabalhou durante mais de uma década na Cimianto em Alha

Ex-trabalhadores fazem rastreio para avaliar consequências da exposição ao amianto

Associação SOS Amianto e Fundação Champalimaud estão a realizar um rastreio nacional destinado a quem trabalhou em fábricas onde a matéria-prima era o amianto, onde se inclui a extinta Cimianto de Alhandra. Luís Santos, de Vila Franca de Xira, foi um dos trabalhadores que passou pela fábrica e está a participar no estudo.

A Fundação Champalimaud em parceria com a SOS Amianto lançou no último ano um programa de diagnóstico precoce do cancro causado pela inalação de fibras de amianto, o Mesotelioma Pleural Maligno (MPM), que vai rastrear, gratuitamente, duas centenas de pessoas de fábricas de todo o país que trabalharam na produção de materiais com amianto. O estudo inclui trabalhadores da antiga Cimianto. Também estão abrangidos profissionais que tenham estado em áreas onde tenham tido contactado com produtos contendo amianto, como metalomecânicos, manutenção naval e até saneamento básico. Os interessados em participar no rastreio só têm de contactar a SOS Amianto e o rastreio é gratuito. O objectivo é estudar um novo método de diagnóstico, analisando metabolitos voláteis no ar exalado da respiração. É um método não invasivo, realizado apenas com recurso ao sopro, sendo depois complementado com uma TAC torácica de baixa dose.
Luís Santos, de Vila Franca de Xira, tem 50 anos e trabalhou quinze anos na Cimianto, onde foi moldador e fiel de armazém. Entrou na Cimianto em 1997 quando a empresa dava trabalho a 257 pessoas. “Dos equipamentos de protecção individual só se usava o calçado e algumas máscaras de vez em quando. Muito raramente. E havia muita gente com dificuldades respiratórias. Era uma fábrica com muitas poeiras”, recorda a O MIRANTE. Quando o amianto foi proibido, a empresa reduziu a quantidade de trabalhadores para uma centena e depois para 85 aquando da primeira insolvência, em 2009. Por fim, em 2012, com pouco mais de 65 trabalhadores, a fábrica faliu de vez.
“Em 2000 já estávamos a fazer testes com fibra sintética mas não tinha a mesma resistência e fiabilidade das fibras de amianto. Para mim, o negócio não estaria condenado se tivesse havido um investimento na produção de telhas metálicas ou de painéis sanduíche que ainda hoje estão em voga”, defende Luís Santos, que hoje trabalha numa empresa de transformação de tomate na Castanheira do Ribatejo.
“Na década de 70, como o trabalho era muito manual, os meus colegas lembram-se de chegar a dormir em cima dos fardos de amianto, sem protecção nenhuma”, recorda. E confessa não ter grandes dúvidas de que aconteceu uma “grande libertação de amianto” na zona próxima da fábrica aquando do fecho da empresa e do seu desmantelamento. Luís Santos diz conhecer muitos colegas que morreram de cancro no pulmão, o último deles em Janeiro deste ano com apenas 55 anos. “Uns tiveram sorte e outros nem tanto. Muitos reformaram-se e outros continuaram com problemas respiratórios. Eu, felizmente, no rastreio já percebi que está tudo bem”, refere, elogiando a importância do estudo.

Caminho ribeirinho em cima de amianto

O terreno onde hoje passa o passeio pedonal ribeirinho na zona de Alhandra foi ganho pela Cimianto ao rio com aterros de resíduos altamente contaminados com amianto. No seu estado actual, a presidente da SOS Amianto garante que não são perigosos para a saúde. Mas deixa cautelas: “É importante ter noção que sempre que passamos no passeio ribeirinho naquela zona caminhamos sobre amianto. Não pode haver de forma alguma perfurações ali sem se ter consciência que furar naquela zona é um trabalho de risco elevado para a saúde”, alerta.

Ex-trabalhadores continuam sem receber

O processo de insolvência da Cimianto continua uma década depois e os credores continuam a lutar por reaver quase 3 milhões de euros, incluindo os trabalhadores. Este ano houve novidades: a cobrança com sucesso de dívidas de fornecedores à Cimianto permitiu realizar o rateio para que os trabalhadores, que eram dos últimos na lista para receber os créditos, possam finalmente receber algumas compensações, que vão andar entre os 65 euros e os 7 mil euros, consoante a antiguidade na empresa.

Sintomas comuns a estar atento

O MPM é um tipo de tumor maligno da pleura associado à exposição contínua ao amianto com sintomas não específicos, tendo um diagnóstico difícil. O diagnóstico precoce é crucial para aumentar as probabilidades de tratamento bem-sucedido. Os sintomas mais comuns são falta de ar, dor no peito, perda de peso e fadiga, que geralmente só aparecem em fases avançadas da doença, o que pode levar à confusão com outras doenças do trato respiratório. Segundo Jorge Cruz, cirurgião da Unidade de Pulmão da Fundação Champalimaud que está a liderar o programa, Portugal regista hoje 38 casos por ano de MPM, muito devido à falta de diagnóstico adequado.

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