70% dos casos de abuso sexual de crianças acontecem no seio familiar
A secção de investigação de crimes sexuais na directoria de Lisboa e Vale do Tejo da PJ recebe anualmente mil inquéritos e estão abertos 590 processos. O coordenador de investigação, José Matos, alerta para o problema da revitimização quando o primeiro contacto não é a Polícia Judiciária.
A Comissão de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) de Santarém assinalou o 35º aniversário da Convenção sobre os Direitos da Criança com a palestra “Conhecer para Proteger”, sobre abuso sexual na infância e adolescência. Para a presidente da CPCJ de Santarém, Teresa de Jesus, “precisamos de combater a cultura do silêncio e da impunidade”. José Matos, coordenador de investigação criminal da PJ da secção de investigação de crimes sexuais na directoria de Lisboa e Vale do Tejo, destacou que 70% dos abusos de crianças são intrafamiliares e que o primeiro contacto em caso de suspeita deve ser a Polícia Judiciária.
José Matos alertou para nunca se contactar a família, pois pode resultar na destruição das provas, como vídeos, fotografias ou objectos utilizados na prática, e comprometer a investigação, revelando que em caso de suspeita nunca manda a alegada vítima e o alegado agressor para a mesma casa, solicitando a intervenção de instituições para acolher a criança ou jovem. Criticou ainda as escolas que abrem processos de averiguação interna em casos da competência da PJ e os profissionais que se refugiam no dever de segredo profissional, que não é um dever absoluto, e preferem omitir os casos de abuso.
“As crianças chegam devastadas e cansadíssimas”, refere José Matos, acrescentando que as vítimas relatam, em média, oito vezes os episódios de abuso que “não queriam contar a tantas pessoas”. De modo a evitar a revitimização, reforça, basta que sejam feitas três perguntas à vítima – quando, quem e onde – e nunca quantas vezes e como. Na opinião do investigador da PJ, há o mesmo número de crimes sexuais, mas há mais denúncias e mais sensibilidade para o assunto, entrando anualmente para a secção cerca de mil inquéritos, estando 590 processos activos.
Abusados dão sempre sinais de que foram alvo de crime
A psicóloga da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), Mariana Rodrigues, explica que as crianças ou jovens dão sempre sinais de que foram alvos de crime, quer explicitamente quer pela adopção de alguns comportamentos que podem ser confundidos com sinais da adolescência, ou ainda simples desenhos ou brincadeiras, no caso das crianças. As consequências de um crime sexual podem ser físicas, como lesões e ferimentos, problemas na saúde sexual, perda de apetite, oscilações de peso, problemas de sono e descuido nos cuidados de higiene, que por vezes servem para tentar afastar o agressor. A nível psicológico originam baixa-autoestima, vergonha associada à culpa, ansiedade e medo de que se volte a repetir, de ninguém acreditar e de ficarem conhecidas como vítimas. Já em termos sociais, podem levar ao afastamento de quem se gosta, agressividade, descida de notas e absentismo escolar. A criança ou jovem também pode adoptar o papel de cuidador da família com frases como “não saias à rua” ou “não te aproximes de x pessoa”.
A quebra de laços familiares, uma vez que o agressor também pode ser o promotor da qualidade de vida da família, e a normalização dos abusos que muitas vezes se “fazem de forma gradual”, são factores que podem dificultar a revelação, segundo Mariana Rodrigues. Em caso de revelação, o profissional deve manter a calma e adoptar uma escuta activa, contendo sentimentos negativos e dizendo frases como “acredito em ti” e “a culpa não é tua”.
Segundo o site da APAV, mesmo que um menor de 14 anos tenha consentido os actos sexuais, a pessoa com quem tem contacto está a praticar um crime, por falta de discernimento do jovem ou criança e consequências para o seu desenvolvimento. Em alguns casos, os actos sexuais praticados com jovens entre os 14 e os 17 anos com os quais possam ter concordado também podem constituir crime. Por exemplo, quando são levados a cabo por alguém que tenha algum tipo de autoridade sobre o jovem ou quando alguém mais velho tenta aproveitar-se da pouca experiência do jovem.