Sociedade | 25-12-2024 10:00

Mercado de trabalho continua a ser desafiante para quem sofre de incapacidade

Mercado de trabalho continua a ser desafiante para quem sofre de incapacidade
TEXTO COMPLETO DA EDIÇÃO SEMANAL
Emilda Vaz é funcionária na Escola Secundária de Azambuja onde foi aluna

Entrar no mundo do trabalho é sinónimo de autonomia e independência. Um objectivo nem sempre fácil de atingir para aqueles que sofrem de alguma incapacidade.

Há sonhos que ficam pelo caminho, outros que duram apenas um dia. Emilda, António, José e Daniel são exemplos de superação e integração no mercado laboral que fogem às estatísticas negras do desemprego de pessoas com deficiência.

Quando Emilda Vaz concluiu o 12º ano na Escola Secundária de Azambuja não sabia que iria voltar a percorrer aqueles corredores numa qualidade que não a de estudante. O que sabia era que não queria ficar por ali e que queria ir atrás do seu segundo maior sonho, ser jornalista, depois de ter concretizado o primeiro: “andar na escola e fazer amigos”. Diagnosticada com osteogénese imperfeita, doença que prejudica a formação correcta dos ossos e que faz com que se partam com facilidade, é desde há quatro anos assistente operacional na Câmara de Azambuja, colocada na escola secundária.
Para Mimi, como é carinhosamente tratada por todos, voltar à escola trouxe novas barreiras, novos olhares e desafios para ultrapassar. “As pessoas são muito prestáveis”, refere a O MIRANTE, ressalvando que tanto da parte dos alunos como do pessoal docente e não docente “ao início é sempre estranho”, às vezes também para ela. “Consigo reparar nos olhares que trazem curiosidade e às vezes uma certa forma de as pessoas me tratarem: a de coitadinha e não gosto nada dessa versão, porque me ensinaram a não ser coitadinha. Quando demonstram esse olhar mostro-lhes que sou capaz de fazer o meu serviço”, explica, ressalvando que não tem problemas em pedir ajuda até porque precisa dela, nomeadamente para ir à casa-de-banho.
No local de trabalho desta jovem de 29 anos, natural da Guiné Bissau, as pastas com documentos de que necessita para cumprir as suas tarefas, como processar as faltas do pessoal docente e não docente, estão disponíveis numa estante à qual consegue chegar sentada na cadeira-de-rodas que a acompanha para todo o lado. Ou melhor, quase para todo o lado, já que o piso superior da escola é um espaço que lhe está vedado por falta de acessibilidades. “Vou quase para todo o lado”, diz, explicando que as rampas e casa-de-banho para pessoas com mobilidade reduzida foram “improvisadas” quando ingressou naquele estabelecimento de ensino como aluna.
À medida que os anos foram passando o sonho desta antiga utente da Cerci Flor da Vida de Azambuja foi ficando para trás, ou se quisermos, assumindo outros contornos. Depois de não ter conseguido média para o curso superior de Jornalismo frequentou e concluiu um em Design Gráfico, em Lisboa, para onde ia sozinha, de comboio, três vezes por semana. “O meu objectivo é crescer mais profissionalmente. Sou uma pessoa com mobilidade reduzida mas não significa que não consiga muito mais”, afirma com convicção a funcionária de pele morena, lábios pintados de um vermelho que não passa despercebido e de baixa estatura - tão baixa que os pés não passam do assento da cadeira. “Nunca tive vergonha daquilo que sou. Esta sou eu, mas não sou menos capaz”, sublinha a assistente operacional que não fractura um osso desde os 16 anos por acção da medicação que faz diariamente.
A viver com amigos em Azambuja, depois de ter deixado a residência da Cerci Flor da Vida, Mimi orgulha-se de ter pagado os seus estudos com o ordenado mínimo. E, apesar de recear que lhe fechem portas pela sua condição, não esconde a ambição de querer um emprego mais desafiante e com remuneração superior. “Se cheguei até aqui posso ir mais longe”, remata.

Os moços de recados do município de Azambuja
Na Câmara de Azambuja trabalham actualmente oito pessoas com deficiência e incapacidade ou capacidade de trabalho reduzida, através de programas do Instituto de Emprego e Formação Profissional. Entre elas estão, além de Mimi, António Fernandes e José Santos, outros dois ex-utentes da Cerci Flor da Vida que já passaram por mandatos de cinco presidentes diferentes e se auto-intitulam como “os moços de recados” da câmara. “Com muito orgulho! Sinto-me feliz aqui”, atira António, 51 anos, que queria ser bombeiro - sonho antigo já concretizado pela corporação de Azambuja que o deixou passar um dia no quartel e apagar “uma fogueira pequenina”.
António e José, ambos com incapacidade intelectual, recebem o ordenado mínimo e são os responsáveis por fazer circular a informação e documentação escrita pelos vários departamentos. “Quando não sei, peço ajuda. As pastas têm os nomes para quem são mas não sei ler. Pergunto à chefe a quem tenho de entregar e decoro para quem é a pasta cor-de-rosa, a azul... nunca falho”, diz com confiança José, que aos 50 anos vive com a madrinha, depois de a sua mãe ter falecido e o pai ter ficado acamado. Antes de trabalhar no município esteve empregado num restaurante onde, conta, foi alvo de agressões graves por parte dos proprietários do negócio. Depois disso ficou desempregado. “Estava em casa dos meus pais, mas o meu pai não podia continuar a dar-me de comer porque sou um homem, tenho de trabalhar”, afirma. Depois remata: “se formos embora daqui da câmara não temos sítio para ir”.
Uma realidade confirmada pelo presidente da direcção da Cerci Flor da Vida de Azambuja, José Manuel Franco. “As metas, definidas pela nossa instituição, variam muito e têm em conta as áreas de formação e o perfil dos formandos. Digamos que para cada grupo de seis garantir a inserção de um já se pode considerar como sucesso”, refere, salientando que “a inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho é fundamental para promover a igualdade de oportunidades”.

O jardineiro da Câmara de Santarém
Daniel Rosa é um dos jardineiros da Câmara de Santarém. Com 53 anos, o trabalhador com défice cognitivo desempenha as mesmas funções dos colegas à excepção do manuseamento de máquinas. A residir numa casa partilhada da Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão com Deficiência Mental (APPACDM), levanta-se às 07h00 para entrar às 08h30. Dá tempo de lavar a loiça do pequeno-almoço e fazer o trajecto a pé até ao edifício dos Paços do Concelho, onde se junta à restante equipa de sete elementos para seguirem para o trabalho nos jardins.
Regressa para almoçar no refeitório da câmara e às 13h30 entra para o turno da tarde. A rotina é assim há 25 anos, quando entrou para a Câmara de Santarém para trabalhar nas obras, recordando os tempos em que fazia massa na betoneira e carregava areia e tijolos. Agora os dias, admite, são mais fáceis a embelezar a cidade. Só lamenta que os donos que levam os cães a passear pelos jardins não recolham os dejectos dos animais e que haja quem continue a atirar “pontas de cigarro e lixo” para o chão. Daniel Rosa destaca a necessidade das pessoas se respeitarem mutuamente e diz sentir-se “bem” e integrado na equipa. “O meu sonho é estar sempre aqui junto dos meus colegas”, conclui.

Daniel Rosa é um dos jardineiros na Câmara de Santarém
José Santos e António Fernandes fazem circular a documentação entre os vários serviços da Câmara de Azambuja

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