Sociedade | 01-02-2025 18:00

O médico que combateu a Sida, teve a morte a rondar e não se rendeu a uma reforma compulsiva

O médico que combateu a Sida, teve a morte a rondar e não se rendeu a uma reforma compulsiva
Victor Bezerra, 80 anos, aposentou-se como médico no início deste ano e revela que gostava de escrever um livro de memórias

Durante quase meio século, Victor Bezerra exerceu medicina em Santarém com uma breve, mas muito marcante, passagem pela Chamusca, no início de carreira, e também pelo Hospital de Torres Novas.

Foi pioneiro na região no combate à Sida, há vinte anos esteve às portas da morte contaminado por um doente e acabou reformado compulsivamente. Superou a pericardite tuberculosa e ressurgiu revigorado para gozar uma espécie de segunda vida, familiar e profissional. Nesta conversa desassombrada com o MIRANTE partilha opiniões assertivas e algumas das muitas histórias que um dia gostava de contar em livro.


Victor Bezerra, 80 anos, aposentou-se como médico no início de 2025, após mais de meio século de uma carreira com muitos episódios dignos de ser contados, como uma reforma compulsiva depois de ter estado às portas da morte; ou, nos primórdios do percurso, quando até foi alvo de uma manifestação política para o sanearem da unidade de saúde da Chamusca, no período conturbado após o 25 de Abril. Nascido no Porto a 2 de Setembro de 1944, casado por três vezes, pai de sete filhos e avô de cinco netos, o médico fez o seu trajecto profissional quase todo em Santarém, mas trabalhou também na Chamusca e em Torres Novas.
Antes de ir cursar Medicina trabalhou seis anos como professor da Escola Industrial e Comercial de Espinho, com o objectivo de amealhar dinheiro para pagar os estudos na Faculdade de Medicina do Porto. Dava aulas de físico-química, de matemática e de electrotecnia, beneficiando dos estudos no Instituto Industrial do Porto, de onde saiu como agente técnico de engenharia.
Rumou a sul após concluir o curso de Medicina, com o fim de cumprir o serviço militar. Era recruta em Mafra quando se deu a revolução. Escapou à mobilização para a Guerra do Ultramar e foi colocado como alferes miliciano médico na Base Aérea 3, em Tancos, passando depois a dar também consultas na unidade de saúde da Chamusca, então propriedade da Santa Casa da Misericórdia local, que se tornaria depois hospital e centro de saúde. Começava ao final da tarde e o atendimento estendia-se noite dentro, tendo sido nomeado delegado de saúde interino. Não esquece o apoio que teve nessa altura por parte do médico Luís Tecedeiro, já falecido, que lhe cedia o consultório para trabalhar fora de horas.
A sua passagem pela Chamusca foi relativamente curta – à volta de ano e meio - mas muito marcante, tanto pela positiva como pela negativa. A assistência à gravidez era “muito má” e a actualização médica dos colegas algo antiquada, com prescrições por vezes desadequadas. Montaram um raio-X e um laboratório no que viria a ser o hospital da Chamusca e foi aí que desenvolveu projectos pioneiros a nível nacional e tomou contacto com novas tecnologias, como a utilização do fax na telemedicina, com transmissão à distância de dados, em cooperação com o Hospital de Santa Maria.

Uma manifestação para o expulsarem da Chamusca
Foi na Chamusca que viu o que o fanatismo politico-partidário e a psicologia das multidões podem fazer. “Como entretanto a politização da medicina estava a tomar um caminho muito grande, houve uma invasão da Misericórdia, arrombaram a porta da secretaria”, conta. Entretanto, as forças da esquerda radical que tinham invadido a Misericórdia puseram um panfleto em circulação onde diziam que Victor Bezerra compactuava com eles. O que, garante, não era verdade. E recorda o que disse na altura: “o meu trabalho aqui é de medicina, não é político, não tenho nada a ver com invasões de propriedade privada ou colectiva”.
Foi o bastante para o marcarem como inimigo de certos ideais então muito em voga e quererem despachá-lo dali. “Até fizeram uma manifestação na praça de touros para me expulsarem da Chamusca”, afirma. Estava visto que não havia condições para continuar e a sua passagem pela Chamusca chegava ao fim.
Ainda nesse período efervescente da nossa História, Victor Bezerra viveu o golpe militar de 11 de Março e o Verão Quente de 1975 em Tancos e como frequentava a messe de oficiais da Base Aérea ia tomando conhecimento das movimentações, “mas não passava daí”, porque não se metia nessas questões.
Findo o serviço militar, Victor Bezerra estabeleceu-se em Santarém, ainda em 1975, onde trabalhou no centro materno-infantil e depois no antigo hospital, propriedade da Misericórdia de Santarém, que em 1977 passaria para a tutela do Estado. Fixou-se no Ribatejo porque foi “muito bem recebido” e assumira compromissos desafiantes. Foram abertas vagas para três internos de especialidade e ele foi um dos contemplados. Começava assim a desenhar-se a carreira que acabaria no topo, como assistente graduado em Medicina Interna.
É filiado no Partido Socialista mas sem militância activa. A primeira pessoa que o levou para a política em Santarém foi o empresário José Manuel Cordeiro, já falecido, que o convidou para integrar uma lista do PPD/PSD à câmara, numas eleições autárquicas que viriam a ser ganhas pelo socialista Ladislau Botas.
Na cidade teve também ligação ao meio associativo, assumindo a presidência da direcção do Lar de Santo António durante cinco mandatos, num período em que foram feitas importantes obras de requalificação nas instalações dessa instituição de acolhimento de raparigas.
Victor Bezerra gosta muito da cidade que escolheu para viver, assimilou com facilidade as tradições ribatejanas e não tem problemas em assumir que gosta da festa brava. “Santarém é uma cidade muito bonita, cheia de pergaminhos históricos”, refere. Católico não praticante, soube com surpresa da vocação de um dos filhos para a vida sacerdotal. Diz que vai aproveitar a reforma para dedicar mais tempo aos filhos mais novos e aos netos e netas.

“Muitos médicos só estão interessados em ganhar dinheiro”

Aposentou-se no início de Janeiro, após uma carreira de mais de cinco décadas. Aposentei-me da arte médica. Não é que não tivesse doentes, pois tinha, e muitos. Mas aquilo que verifiquei foi que estava a regressar aos tempos da Chamusca, em que tínhamos praticamente apenas a nossa sabedoria, os nossos sentidos e um diálogo correcto com os doentes para chegar a um diagnóstico. Começaram a chegar cada vez mais doentes que vinham procurar-me em desespero, com situações muito complicadas. Comecei a ter consultas de uma hora ou hora e meia. Não renego esse tempo que perdi com eles, antes pelo contrário. Houve um crescendo muito grande que veio a avolumar-se até aos meus 80 anos, em que os colegas que estavam na medicina geral e familiar não gostam, não querem, mas também não fazem...
Alguns dos seus colegas estão mal preparados, é isso? Não, muitos estão bem preparados. Estão até bem preparados demais.
Em que sentido? No sentido em que são tipos muito bons mas também são muito malucos da cabeça. Tem dúvidas disso? Eu não tenho! E acho que muitos deles só estão interessados em ganhar dinheiro. Eu sempre estive interessado, em primeiro lugar, em tratar os doentes, e só depois em ganhar dinheiro.
Hoje há mais materialismo? Não estou a dizer que as condições sejam boas e que não tenham razão em certas coisas…
Santarém prepara-se para ter um segundo hospital privado, para além do público. Como vê essa realidade? Não sou contra. Acho que há lugar para todos. Eu sempre tive um consultório privado e tinha uma clínica.
Acumulava funções no público e no privado. Há quem não concorde com essa situação. Mas comigo podem concordar, porque saía do hospital às quatro, não saía às onze, para ir para a minha clínica.
E não encaminhava doentes do hospital para o privado? Nunca, mas conheço muitos colegas que o faziam.
Soube separar sempre as águas entre essas duas realidades? Por causa disso é que tenho alguns inimigos médicos.
O que pensa das alterações nas administrações hospitalares sempre que há mudança de Governo? Muito mal, até porque esta última administração do Hospital de Santarém, que eu saiba, até estava a trabalhar muito bem. O que é mudou? Também não sei! Foram critérios políticos.
Voltando atrás. Custou-lhe muito o seu dia de trabalho? Custou muito, custou. Sinto que estava disposto a continuar a trabalhar, porque ainda estou muito senhor do meu raciocínio. O que não suporto é a maneira como os doentes vêm e as condições que trazem.
O que vai fazer agora com tanto tempo livre? Vou ajudar a criar os meus filhos, os meus netos e continuo a estudar, a receber revistas na área da medicina. Continuo a estar muito interessado nas últimas novidades que se passam a esse nível.
Como é ser pai de sete filhos, alguns com grande diferença de idades? Cinco deles estão orientadíssimos. As netas e os netos são muito queridos, damo-nos muito bem, estão muito bem acompanhados. Consegui até ter um filho que é padre.

“Sempre me emocionou muito ver uma pessoa a morrer”

Tem sido fácil enfrentar a implacável passagem o tempo? Não. Interrogo-me, porque sei perfeitamente que estou num caminho sem regresso, num caminho que tem um fim.
Quem lida com a morte de frente encara a ideia da finitude mais facilmente? Não sei. Acho que não. Penso que um médico tem mais dificuldade em morrer do que outra pessoa. Porque sabemos, sentimos… Sempre me emocionou muito ver uma pessoa a morrer.
Tinha coragem para dizer aos doentes que estava a chegar o fim? Sim e ficava ao pé deles. Sempre fui um lutador incansável por haver uma assistência no hospital para as pessoas em fase terminal. Nunca se conseguiu pôr em prática. É uma vergonha! A pessoa morre com um soro no braço a olhar para o tecto e a chorar. E a olhar à volta para saber onde é que está, quem é que está com ele. Assisti a situações dessas e alguns doentes tirei-os da morte. Era uma satisfação pessoal muito grande dar-lhes um passaporte para a vida.
Conforta-o acreditar que pode haver mais alguma coisa depois da morte? Isso a mim não me preocupa nada. Preocupa-me é a maneira como isso ocorrerá, pois não queria dar trabalho a ninguém.
Esteve à beira da morte e viveu uma segunda vida depois disso. Se me perguntassem se estava à espera desse percurso, responderia que não, não estava.
O que lhe falta fazer? Gosto muito de escrever e de publicar coisas. Às vezes acordo e vou para o computador escrever. Gostava de escrever um livro de memórias. Sabe por que não escrevo? Tenho medo que me chamem vaidoso.

Médico fez o seu trajecto profissional quase todo em Santarém

Às portas da morte contaminado em serviço por um doente

Victor Bezerra foi médico durante quase três décadas no Hospital de Santarém, onde chegou a director de serviço e montou o Hospital de Dia de Doenças Infecto-Contagiosas, o que mais tarde viria a fazer também no Hospital de Torres Novas do Centro Hospitalar do Médio Tejo, já depois de ter sido reformado compulsivamente na unidade de Santarém, aos 60 anos, na sequência de uma doença que o deixou às portas da morte.
“Estive a morrer com uma pericardite tuberculosa, em 2003/2004. No Natal de 2003 ainda fiz banco, em Janeiro de 2004 comecei a emagrecer e a adoecer gravemente. Fui contaminado em serviço por um doente. Os bacilos alojaram-se num pulmão e no coração e tive que ser reformado à força. Não morri porque não calhou. Estive um mês e meio com guia de marcha em casa, muito bem acompanhado pelos meus colegas João Roque, Graça Ferreira da Silva e Rosário Faustino. Eles estavam desesperados porque não sabiam o que eu tinha”, conta.
Teve que abandonar o serviço e uma junta médica declarou-o como inapto. “Durante um ano estive a fazer terapêutica com todos os medicamentos que havia para a tuberculose e consegui secar a massa que tinha à volta do coração”, recorda. Muitos dos colegas de curso, com quem vai mantendo o contacto, ficaram admirados por ter sobrevivido.
Superada a doença, abriu-se uma nova fase da vida que lhe deu um novo relacionamento sentimental e mais dois filhos. E também novas oportunidades profissionais. Primeiro foi convidado para dirigir o serviço de urgência do Hospital CUF Descobertas, em Lisboa, onde esteve pouco tempo; e, em 2010, o Centro Hospitalar do Médio Tejo desafiou-o para abrir o Hospital de Dia de Doenças Infecto-Contagiosas em Torres Novas.
Esteve em Torres Novas quase três anos, mas mais uma vez a política atravessou-se na sua vida profissional. Houve mudança de Governo e um dia, ao chegar ao hospital, uma administradora empossada de fresco manda-o chamar, diz-lhe que tem prazer em conhecê-lo mas que nesse momento já está despedido e que no dia seguinte escusava de se apresentar. Alegou que os seus doentes, alguns com Sida e hepatites graves, não podiam ficar sem assistência, senão morriam, e a administradora respondeu-lhe para não se preocupar, que os doentes iam todos para Santarém. Acabou por sair e recebeu a indemnização devida. Depois, começou a exercer medicina interna em clínicas privadas, até meter os papéis para a aposentação, no início de 2025.

Um acaso levou-o até à linha da frente do combate à Sida

Foi pioneiro nas campanhas de prevenção e combate ao vírus da imunodeficiência humana (VIH), num período em que a doença era altamente estigmatizante e associada a determinados grupos, como homossexuais e toxicodependentes. Porquê essa escolha? Foi um acaso. Eu sou coca-bichinhos e recebo revistas para estar actualizado. Quando recebi as notícias da infecção dos quatro homossexuais nos Estados Unidos da América, que morreram com uma coisa que ninguém sabia o que era, tomei nota daquilo. Foi daí que começou o estigma. E uma vez entra uma senhora no banco de urgências, com dificuldades respiratórias, cheia de febre, faz um raio-X e tinha uma pneumonia extensíssima. Estava mal. Mandámo-la para a enfermaria e a certa altura reunimo-nos e tomámos a decisão de a mandar para o Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Ficou lá um dia, deram-lhe uma carga de antibióticos, a senhora melhorou e mandaram-na de volta. Até aqui tudo bem. O problema é que na altura já se sabia que havia Sida, mas afirmava-se a pés juntos que era uma doença só de homens. Vi a radiografia, fiz um pequeno historial à doente, que tinha a ver com ela ter saído de Portugal e ter ido a determinado sítio, e verifiquei que tinha Sida.
Ficou surpreendido por ter ali um caso que não encaixava no que era conhecido? Obviamente. Claro que não havia tratamento e a mulher morreu. Os meus colegas não me perdoaram por ter reportado em público que tinha tido a primeira mulher a morrer com Sida em Portugal.
Desmistificou uma série de ideias feitas. Está a perceber o problema? Eles ficaram fulos comigo. Nunca me perdoaram. Depois a coisa amainou, mas houve colegas que ficaram com rancor, com inveja. Mas isso não impediu que continuasse a trabalhar naquela área. Aliás, até me acicatou.
Acompanhou muitos casos fatais? Muitos, muitos.
A Sida perdeu mediatismo mas continua a andar por aí? O facto de ser hoje considerada uma doença crónica tem levado a que se baixe a guarda? Hoje o que há é uma falta de compromisso da sociedade, entre aspas, política e médica, para tentar ir ao âmago da questão, que foi o que fiz com o Fausto Roxo e com o Jaime Nina. Fomos às escolas todas da zona de Santarém fazer palestras para os miúdos. Isso acabou.
Parece estranho que passados tantos anos não se tenha descoberto uma vacina contra o VIH e que em relação ao vírus que causa a Covid-19 tenham sido descobertas várias em tempo recorde? Não é estranho. O vírus é que é estranho, é um macaco do caraças.
O que mais lhe agradou fazer ao longo da carreira profissional? Tratar doentes, salvar vidas. Tenho no meu currículo muitas situações de pessoas que hoje passam por mim na rua e não deixam de me cumprimentar, não deixam de agradecer por lhes ter salvo a vida. É só isso.

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