Sociedade | 26-03-2025 21:00

Sono: a raiz do problema para o cansaço que não pode ser encarada como luxo

Sono: a raiz do problema para o cansaço que não pode ser encarada como luxo
Gustavo Reis, mestre em patologia do sono e director do Serviço de Pneumologia e do Departamento de Medicina da ULS Lezíria. André Pedro procurou ajuda e foi diagnosticado com um dos 80 distúrbios do sono

Há os que dormem e acordam revigorados, mas André Pedro não. Mesmo dormindo oito horas acordava exausto. Durante anos foi assim até procurar ajuda e ser diagnosticado com um dos 80 distúrbios do sono.

Dormir não é um luxo, mas uma necessidade biológica que se não for respeitada tem consequências profundas na saúde física e mental, alerta o especialista em patologia do sono, Gustavo Reis. O Dia Mundial do Sono assinalou-se a 15 de Março.

André Pedro não sabe quando é que começou a dormir mal. Durante anos normalizou o acordar sem energia, sem vontade de enfrentar o dia porque, afinal, tinha dormido as oito horas recomendadas por noite para um sono reparador. Achava que era dele, que era assim porque tinha engordado demasiado e, por isso, não procurava ajuda. Mas começou a ser cada vez mais difícil encarar as manhãs. “Era uma sensação desgastante. Imagine um telemóvel a tentar funcionar com 1% de bateria, era isso”. Mas o telemóvel desligava-se e André não. Tinha de trabalhar e lidar com o seu próprio estado de cansaço permanente, de ansiedade e de uma irritabilidade constante e veloz.
Surdo desde os oito meses, devido a uma meningite, e casado com uma mulher surda, foram as queixas da filha do casal, de que o seu ressonar era “muito alto”, que o despertaram para a possibilidade de ter um problema. E aí lembrou-se do conselho que já a sogra lhe tinha dado num dia em que foi dormir a sua casa: “disse várias vezes para eu ir ao médico, mas ignorei”. Foi numa consulta com a médica de família que acabou encaminhado para a especialidade e, em Agosto de 2023, foi diagnosticado com apneia do sono. Havia noites em que “parava de respirar um minuto durante o sono”.
A apneia obstrutiva do sono, mais predominante no sexo masculino, é um dos mais de 80 distúrbios do sono catalogados na Classificação Internacional de Distúrbios do Sono e “um dos mais graves, pelo risco cardiovascular e de acidentes associado”, explica a O MIRANTE o especialista em patologia do sono, Gustavo Reis, a propósito do Dia Mundial do Sono, que se assinalou a 15 de Março. A narcolepsia, a insónia crónica grave, as parassonias violentas e as hipersónias centrais são outros dos distúrbios e, apesar de nem todos terem cura definitiva, a maioria pode ser eficazmente tratada e controlada com abordagens personalizadas, permitindo melhorias significativas na qualidade de vida, diz o especialista.
No caso de André Pedro, residente em Santarém, bastou ter a máquina CPAP - dispositivo concebido para tratar a apneia do sono - para sentir uma diferença enorme, logo nas primeiras semanas. “No início estranhei acordar com tanta energia, sentia-me demasiado motivado e animado”, recorda. Foi assim que percebeu que a raiz do problema para o seu cansaço extremo não era o peso a mais na balança mas o sono.

Privação de sono pode ser fatal
O director do Serviço de Pneumologia e do Departamento de Medicina da Unidade Local de Saúde da Lezíria, também a exercer no Hospital CUF Santarém, refere que “na sociedade moderna damos pouca importância ao sono” e “valorizamos excessivamente a produtividade contínua, muitas vezes sacrificando este pilar fundamental” para a saúde. “O sono não é um luxo, mas uma necessidade biológica essencial para o funcionamento adequado do organismo. A sua negligência tem consequências profundas na saúde física e mental, sendo um elemento tão importante quanto a alimentação equilibrada e o exercício físico regular”, afirma o médico que ao longo dos últimos 12 anos a exercer em Santarém acompanhou mais de cinco mil pessoas com distúrbios do sono.
Gustavo Reis alerta que “a privação total de sono pode ser fatal”, devido à “deterioração progressiva das funções cognitivas, imunitárias e metabólicas” que, por sua vez, podem “levar à falência múltipla de órgãos”. Mas, sublinha, “mesmo antes deste ponto extremo, a privação severa de sono compromete gravemente a saúde e o funcionamento normal”.
A memória, “em todas as suas dimensões temporais” é uma das funções afectadas pela falta de sono. A curto prazo, explica, compromete a atenção, concentração e a formação de novas memórias. A médio prazo, prejudica a consolidação das memórias, processo que ocorre principalmente durante o sono profundo. A longo prazo, investigações recentes estabeleceram uma ligação clara entre o sono inadequado crónico e um risco aumentado de desenvolver demência, incluindo doença de Alzheimer, e outras patologias neurodegenerativas.

Dormir no escuro e sem ecrãs nem trabalho nas três horas antes

A necessidade do sono não é igual para todos. Se há quem durma quatro horas por noite e acorde cheio de energia para enfrentar o dia, há quem durma o dobro e sinta que não recuperou. E esse facto, explica Gustavo Reis, deve-se a “múltiplos factores como a genética, a idade, a eficiência do sono - algumas pessoas obtêm maior benefício reparador em menos tempo -, o metabolismo e a actividade cerebral”. Existem “dormidores curtos” naturais (quatro a seis horas) e “dormidores longos” (oito horas ou mais). “O importante não é a duração absoluta, mas se a pessoa acorda restaurada e funciona durante o dia sem sonolência excessiva”, vinca, explicando que um ciclo completo de sono dura aproximadamente 90 a 110 minutos e que, idealmente, deveríamos completar quatro a cinco ciclos por noite para um sono reparador.
Sobre como dormir, o clínico realça que o sono deve ocorrer idealmente no escuro total, havendo estudos que demonstram que mesmo baixos níveis de iluminação ambiental durante o sono podem afectar negativamente a arquitectura do sono e vários processos metabólicos regulados durante o período nocturno. Também para uma melhor higiene do sono, Gustavo Reis aconselha a que nas três horas que o antecedem, “devemos evitar a exposição a dispositivos electrónicos emissores de luz azul (smartphones, tablets, computadores, televisão), o exercício físico intenso, refeições pesadas ou muito condimentadas, o consumo de cafeína, álcool e nicotina, e actividades mentalmente estimulantes ou stressantes, como trabalho ou discussões”.
Quem dorme mal tem por norma a tendência para desenvolver uma “preocupação excessiva com o sono” que, por sua vez, pode criar a chamada “insónia comportamental” ou “insónia psicofisiológica”. Um “ciclo vicioso em que a ansiedade sobre não conseguir dormir gera hipervigilância, que aumenta a activação fisiológica (cortisol, adrenalina), o estado de alerta resultante dificulta ainda mais o adormecimento, a frustração aumenta a cada noite de sono perdido, e o cérebro começa a associar a cama e o quarto à frustração e vigilância, em vez de relaxamento”. Neste caso, em que um problema temporário de sono se pode converter numa insónia crónica, “a abordagem psicológica é fundamental no tratamento”.

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