Nos centros das cidades da região ribatejana os moradores vão desaparecendo

São poucos, cada vez menos, os vizinhos dos centros históricos de Abrantes e Santarém. Quase todos de rostos enrugados pela idade, mas de boa memória que guarda vivências daquelas ruas que já andaram cheias de gente. Este é um retrato desses lugares, a propósito do Dia Nacional dos Centros Históricos, que se assinala a 28 de Março, feito por aqueles que são a alma residente no coração da cidade.
Morar no coração da cidade de Santarém há muito que deixou de ter a alegria de outros tempos, pelo menos para Manuel Duarte, de 75 anos. Já não há um vizinho a quem pedir uma mão de sal, ou dois ovos para completar a receita do bolo. “Agora quando falta é vestir e ir ao supermercado” porque não há, junto à sua, outra porta que se abra. “Vizinhos? Não há quase nenhuns. Nesta rua moram três pessoas daqui aos [antigos] Correios”. São também raros os estendais com roupas a secar ao sol que noutros tempos davam cor às ruas hoje despidas de gente. “É uma tristeza. A cidade caiu”, lamenta. A residir há 46 anos no número 1 da Rua Guilherme de Azevedo, juntamente com a esposa Otília, é fácil perceber-lhe o sorriso debaixo do bigode grisalho e farfalhudo quando é para falar das vivências de antigamente no centro da cidade que escolheu para trabalhar e constituir família. “Lembro-me que quando começou a ser feita a praça de toiros as pessoas levavam o lanche para irem ver as obras porque era muito longe. A vida era toda feita aqui, entre muros, onde havia uma boa dinâmica e todos se conheciam”. Esses tempos, diz com franqueza, “deixam saudade”.
Ver rostos conhecidos nas ruas onde os pombos vão tomando conta dos beirais é cada vez mais raro para Manuel Duarte, que além de morador é um dos comerciantes do centro da cidade. “Mas novos também não há”, adverte, atalhando conversa para o que acha que devia ser feito e não é. “Os privados deviam ter outro olhar para com o centro histórico”, onde as casas estão devolutas e a ficar em ruínas. “A cidade começou a expandir-se para outros pólos, muito do comércio saiu daqui”, diz, acrescentando que “hoje não é fácil ser comerciante nas ruas centrais onde as “rendas são demasiado altas”. Também para quem ali quer morar não está fácil, garante. “Tornámo-nos amigos de uma nómada digital americana que nos pediu ajuda para encontrar casa aqui, mas pediram seis meses de renda adiantada. Claro que não aceitou e acabou por encontrar casa fora do centro histórico”, conta.
Na esplanada do café de Manuel Duarte, que ocupa o passeio, está sentado João Nobre que aos 70 anos é, seguramente, um dos moradores mais antigos. Nasceu em Lisboa mas mora desde sempre na Rua Serpa Pinto, numa casa que está na sua família há gerações. “Tinha movimento, lojas, esplanadas, crianças a brincar na rua. Tinha vida e agora não tem”, atira. “Está a ver ali aquele cartaz? Pronto, era assim”, exemplifica apontando para a tela que cobre a velha fachada de um antigo hotel onde uma multidão de gente se passeia por aquelas ruas. As mesmas onde é agora difícil encontrar quem ande às compras e, ainda mais, quem ali more.
No mês de Março a Associação de Moradores do Centro Histórico de Santarém debateu ideias e que quer entregar aos candidatos à presidência da Câmara de Santarém, “reforçando a importância de colocar as necessidades do centro histórico no centro das prioridades políticas”. O documento final recebeu o título de “Um Centro Histórico Vivido – Os Moradores como Pilares de Desenvolvimento” e aborda áreas que vão desde a limpeza e estacionamento à reabilitação urbana. Sobre este último tópico, o vereador com o pelouro do Centro Histórico, Nuno Domingos, tem considerado que as regras impostas para a requalificação urbana são demasiado rígidas.
A alegria esmorecida do Centro Histórico de Abrantes
Em Abrantes, moradores afirmam que o centro histórico era ponto de encontro com muita vitalidade, mas que actualmente a maior parte das pessoas perdeu o interesse. Falam numa decadência sentida ao longo dos anos que o transformou num espaço sem vida. Uma dessas moradoras é Alice Batista, de 80 anos. A residir no centro histórico há mais de 60, salienta que o local era ponto de encontro para pessoas que ali iam passear, conviver e fazer compras no comércio. Uma realidade, atira, que pertence ao passado. “As pessoas já não querem saber do centro histórico, o que é uma tristeza, pois antes estava tudo aberto e havia sempre pessoas pelas ruas e o centro histórico cumpria a sua função de ser o centro onde todos se reuniam. Os velhos já estão velhos e os novos não querem saber”, desabafa.
Etalvina Utrim, 84 anos, foi viver para Abrantes aos 12 e demonstra semelhante tristeza pela perda de vitalidade. Quando era jovem, lembra, convivia-se muito naquele lugar onde os militares eram presença assídua, contribuindo para um bulício que lhe deixa saudade. “Antes da Revolução de Abril, o quartel era perto do centro, então viam-se muitos militares, assim como muitos estudantes, porque a rodoviária também era aqui perto”, recorda, salientando que só quando se fazem festas o centro se assemelha ao de antigamente. O casal Clementina e Artur Marques, de 78 e 81 anos, respectivamente, reside em Abrantes desde que nasceu e confessa que apesar do centro histórico não ter a mesma atractividade, nos últimos anos tem tido mais movimento. “Desde que houve um aumento de pessoas de fora a vir viver para a cidade, o centro histórico já é mais movimentado, mas antes era mais”, refere Clementina.
Face às preocupações dos moradores, o presidente da Câmara de Abrantes, Manuel Valamatos, afirma que com o crescimento da cidade é natural que surjam outros locais de convívio que rivalizem com o prévio dinamismo do centro histórico. O autarca salienta que estão a ser desenvolvidos projectos de revitalização do centro da cidade, estando a decorrer a requalificação de edifícios e a ser construídos cerca de 30 apartamentos para jovens, para minimizar o envelhecimento populacional na zona. No que toca ao comércio local, sublinha que está a ser desenvolvido o projecto Bairro Digital Comercial que entende como sendo uma boa medida para levar mais dinamismo à zona histórica de Abrantes.
VFX aposta na requalificação de casas
Em Vila Franca de Xira, onde boa parte do centro histórico da cidade ainda é habitado, algumas das preocupações dos moradores estão relacionadas com os edifícios devolutos que poderiam ter uma nova vida. Questionada por O MIRANTE, a Câmara de Vila Franca de Xira diz que uma das ideias para revitalizar os centros históricos das diferentes localidades passa por, além de promover eventos, reabilitar os edifícios municipais que se encontram devolutos nessas áreas para que possam voltar a ser ocupados por famílias. Para isso, delimitou áreas de reabilitação urbana (ARU) nos centros históricos para permitir aos privados investirem na requalificação das suas casas beneficiando de apoios adicionais do Estado e de fundos da comunidade europeia.
O município presidido por Fernando Paulo Ferreira confirma ter submetido a financiamento do PRR 22 candidaturas para reabilitação de edifícios municipais devolutos nessas zonas históricas, bem como a compra de edifícios e fracções habitacionais devolutas nesses locais, para os converter em 225 novos fogos habitacionais. Só no centro da cidade de Vila Franca de Xira foram submetidas quatro candidaturas para reabilitar cinco edifícios, permitindo gerar 13 habitações para arrendamento acessível, num investimento global de dois milhões e 821 mil euros.