Sociedade | 25-05-2025 12:00

Pessoas trans enfrentam barreiras no acesso à saúde em Portugal

Pessoas trans enfrentam barreiras no acesso à saúde em Portugal
André Ribeirinho, Jessica Martins e Madalena Rapazote, que estiveram envolvidos nas V Jornadas do Internato de Medicina Geral e Familiar

Muitas pessoas trans enfrentam dificuldades no acesso aos cuidados de saúde especializados, designadamente no distrito de Santarém e noutras regiões fora dos grandes centros urbanos. O receio de discriminação leva a evitar idas ao médico e realização de rastreios. Um alerta deixado no Dia Internacional contra a Homofobia, Transfobia e Bifobia, celebrado a 17 de Maio, e próximo do Dia Mundial do Médico de Família, assinalado a 19 de Maio.

As pessoas trans do distrito de Santarém não têm resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS) caso queiram fazer terapêutica hormonal ou cirurgias ou ter apoio médico especializado. São encaminhados para o Hospital de Santa Maria ou Centro Hospitalar Psiquiátrico de Lisboa. No Algarve, por exemplo, existe uma ausência total de resposta e todos os utentes têm que se deslocar centenas de quilómetros para Lisboa ou para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Além destas unidades só existe resposta no Centro Hospitalar Universitário do Porto e no Hospital dos Marmeleiros, na Madeira. Nas clínicas privadas os custos são incomportáveis para a maioria das pessoas. Dados que ressaltaram das V Jornadas do Internato de Medicina Geral e Familiar de Lisboa e Vale do Tejo, que dinamizaram, em Alenquer, o workshop “Cuidados de Saúde em Pessoas Trans” no dia 7 de Maio.
Apesar dos avanços legislativos em Portugal, continuam os desafios no acesso equitativo aos cuidados de saúde primários para pessoas trans. A discriminação percepcionada e a falta de formação específica entre os profissionais de saúde são algumas das barreiras a ultrapassar para garantir uma prestação de cuidados inclusiva e respeitadora das identidades de género.
Segundo o Guia Saúde e Leis Trans em Portugal de 2023, a palavra trans engloba uma variedade de vivências de género que não correspondem ao género atribuído à nascença. Identidades trans tanto podem ser binárias (homem/mulher), como não-binárias, e pessoas trans podem escolher transaccionar (ou não) socialmente, legalmente e/ou medicamente, sendo que a não realização destes processos não invalida a identidade da pessoa.
“O medo limita o acesso da população lésbica, gay, transgénero, intersexo e bissexual aos cuidados de saúde e geralmente por causa dos receios aparece pouco. A população trans adulta é largamente ausente das consultas de medicina geral e familiar mas a questão que se impõe é que estas pessoas existem, onde é que estão”, diz a O MIRANTE Madalena Rapazote, médica de Medicina Geral e Familiar, colaboradora do Grupo de Estudos da Sexualidade da APMGF e que se dedica à sexualidade LGBTQIA+.

Médicos não podem recusar
atender utentes trans
Os exames de rastreio em pessoas trans devem ser realizados com base nos órgãos que possuem, independentemente da sua identidade de género ou de terem realizado cirurgias. Cabe ao médico de família avaliar e indicar os rastreios necessários, como os do cancro da mama ou do colo do útero, sempre que clinicamente indicado. Para isso, a população LGBTQIA+ tem de aparecer nas consultas. “Não estão sozinhos, procurem na comunidade porque encontram pessoas que já passaram por tudo o que estão a passar”, sublinha Madalena Rapazote.
Desde a alteração legislativa, homens trans já podem aceder ao rastreio do cancro do colo do útero no SNS, em igualdade de circunstâncias com a população geral. A pesquisa do HPV, feita a partir dos 30 anos, pode ser realizada sem exame ginecológico, através de autocolheita com cotonete, como já acontece na Margem Sul do país. Esta medida, proposta no anterior Governo por um grupo de acompanhamento da saúde LGBTQIA+, veio ultrapassar uma barreira importante ao acesso aos cuidados de saúde, explicou Jéssica Martins, médica de família com competência em sexologia e coordenadora do Grupo de Estudos da Sexualidade da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF).
Madalena Rapazote considera que outro dos maiores desafios nos cuidados a pessoas trans é orientar as famílias e o que se deve fazer e quando no SNS. Quando os pais aparecem com crianças ou adolescentes trans nas consultas o primeiro passo é saber se eles próprios conseguem gerir a situação em família e definir objectivos de acordo com a realidade. Contudo, o mais importante é garantir que as pessoas trans se sintam bem-vindas e seguras, superando o medo do preconceito no acesso aos cuidados de saúde. “Legalmente um médico não pode recusar atender um doente transexual, pode é dizer que não tem capacidade para tal e referenciá-lo para outro lado. Há médicos bons e maus, como em todas as profissões, mas a medicina deve ser exercida com base na evidência. Recordo que, quando surgiu, o tabaco era vendido nas farmácias e fazia bem à saúde e a ciência mostrou que afinal não”, reiterou a médica Jéssica Martins.

Cuidados de saúde para pessoas trans debatidos em Alenquer

As V Jornadas do Internato de Medicina Geral e Familiar de Lisboa e Vale do Tejo dinamizaram, em Alenquer, o workshop “Cuidados de Saúde em Pessoas Trans” no dia 7 de Maio. O Grupo de Estudos da Sexualidade da APMGF iniciou a sua actividade em 2018 e tem vindo a trabalhar, nos últimos anos, as incongruências de género e disfunções sexuais. De acordo com Jéssica Martins, existem cada vez mais médicos interessados em obter formação e em informarem-se sobre como podem apoiar os utentes trans nas suas consultas e para onde os devem referenciar. “A mensagem que deixo para este Dia Internacional contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia é: incluir os outros não te exclui a ti”.
Também o médico André Ribeirinho considera natural que exista temor por parte das pessoas que já se assumiram ou que têm dificuldades em assumir a sua identidade perante o actual contexto sociopolítico. “Têm sido confrontadas com mensagens contraditórias vindas do exterior e também do próprio país, mas existe um caminho já percorrido, com mais aceitação e com profissionais capacitados para apoiar do ponto de vista médico. Houve evolução na sociedade e vamos continuar a lutar para que não haja retrocessos nos direitos conquistados”, disse.

SNS com tempos de espera para tratamentos e cirurgias entre seis meses a dois anos

A terapia hormonal de afirmação de género ou terapia hormonal para a transição de género não têm idade definida para começar, embora por norma seja feita após os 16 anos com autorização dos representantes legais do jovem ou após os 18 anos de forma autónoma. “Há muito a ideia que não se nasce trans, mas as crianças já nascem com incongruência de género. Ela pode manifestar-se de formas diferentes mas o que acontece é que as pessoas já vêm referenciadas em idades mais avançadas, após os 18 anos. E se pensarmos que a incongruência de género desta pessoa se formou aos cinco anos de idade e que ela se desenvolveu ao longo da adolescência de acordo com o que não era o sentimento, estamos a falar de uma adolescência interrompida e estagnada a aguardar pelo momento em que se podem afirmar consoante o seu género”, afirmou André Ribeirinho Marques, médico psiquiatra com competência em sexologia e Coordenador da Unidade de Diversidade de Género e Sexologia da Unidade Local de Saúde (ULS) Lisboa Ocidental.
O especialista relata que a mudança de sexo não é desejada por todas as pessoas e as cirurgias são complexas. No SNS o tempo estimado para cirurgia genital são dois anos após referenciação. No caso das mastectomias, muito procuradas, o tempo é menor. Para acesso a terapêutica hormonal o tempo de espera é entre seis a nove meses, no máximo um ano após o processo prévio de referenciação dos cuidados de saúde primários nas unidades diferenciadas.
A maioria dos homens trans deseja ter filhos, mas não gestar, tornando essencial abordar a fertilidade em consultas, tal como com a população cisgénero. A preservação da fertilidade deve ser discutida antes do início da terapêutica hormonal, pois esta pode afectar a capacidade reprodutiva. Em muitos casos, há atrasos no acesso à procriação medicamente assistida e alguns recorrem a tratamentos no privado ou à autogestão. Suspender as hormonas ou adiar o início do tratamento pode ser necessário para preservar futuras possibilidades de ter filhos biológicos, sobretudo em pessoas jovens, cujas decisões podem evoluir com o tempo.
“As crianças e adultos jovens quando nos chegam com estas questões já pensaram muito sobre isto e estão em grande sofrimento. Já trazem um plano definido e a necessidade de fazer mudanças por ter uma incongruência de género e não por modas, pelo amigo ou por estarem deprimidas. Isto envolve polarização do ponto de vista político e da sociedade e isso tem sido, infelizmente, contributo para definição de políticas de saúde baseadas em pseudo ciência para cortar o acesso a cuidados de saúde por parte desta população”, apontou André Ribeirinho.

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