Para além dos julgamentos há toneladas de papel nos arquivos que atrofiam a Comarca de Santarém

Quando se entra num tribunal há um mundo que não se vê e que exige muito trabalho e cuidados para se preservar processos que vão fazer parte da história da justiça e do país.
Mas o espaço é cada vez mais um bem precioso e a Comarca de Santarém, que abrange 15 tribunais no distrito, todos os anos reinventa mais uns metros para colocar mais papel que se junta às muitas toneladas, fora o que está no arquivo distrital também a rebentar pelas costuras. A comarca tem apostado na digitalização e em retirar gorduras dos processos e precisa também que os municípios olhem para esta situação.
Quem vai a uma secção do Tribunal da Comarca de Santarém e fica impressionado com a quantidade de processos que enchem estantes e secretárias, não imagina as toneladas de papel que estão nos arquivos onde encontrar espaço é uma tarefa hercúlea. No Palácio da Justiça 1 de Santarém, por onde passam os casos de crime, há por cima das salas de audiência e gabinetes um mundo de corredores de papel que ninguém sabe o peso que exerce no edifício. É provável que pese quase tanto quanto o betão desse piso e do telhado que lhe está por cima. Alguns serão eliminados ao fim de cinco ou 15 anos consoante as situações, mas outros são de conservação permanente e remetidos ao fim de 15 anos (processos crime colectivos) ou 20 anos (processos cíveis) ao arquivo distrital onde também conseguir mais um pequeno espaço é como encontrar uma agulha num palheiro.
A gestão da comarca, que abrange os tribunais do distrito de Santarém (11 núcleos e quatro juízos de proximidade), tem vindo a fazer um esforço para retirar o máximo de folhas que não precisam de estar nos processos, reduzindo o seu volume, ou incentivando a digitalização. Uma forma de evitar a ruptura dos espaços dos arquivos onde as prateleiras já chegam ao tecto. Os juízos cíveis vão à frente na aposta dos processos digitais. Antes havia quatro vezes mais papel nestas secções. Na área do crime o caminho está a ser mais difícil porque ainda há muita gente avessa a acabar com as folhas. Mas as forças policiais encararam de frente a opção pelo electrónico e desde o início deste ano que a entrega de papel pela PSP ou GNR no tribunal é residual.
Arquivar não é amontoar maços de papel e para se perceber o trabalho que isso dá, estão cinco funcionários judiciais afectos a esta área e tem sido necessário recorrer a ajuda externa. Em 2024 a comarca contratualizou com o Instituto do Emprego e Formação Profissional a colocação de seis pessoas no âmbito do programa Contratos de Emprego-Insersão. Este ano pretende-se aumentar para 10 o número de pessoas que vão fazer as relações de processos para posterior eliminação e arquivo. Além dos processos de conservação permanente são guardados anualmente os cinco processos mais relevantes por cada espécie para efeitos históricos.
Quando anualmente entram cerca de 50 mil processos na área judicial e do Ministério Público da comarca, a logística do arquivo é um mega-processo de procedimentos. No ano passado foram remetidos para arquivo cerca de 45 mil processos, foram eliminados 18.833 e foram remetidos ao arquivo distrital, na zona histórica de Santarém, 5.792 processos. Se mesmo assim estes números não impressionam, é melhor revelar que nos últimos 20 anos passaram pelas mãos dos arquivistas 716.976 processos, muitos que pesam mais que um tijolo, entre os que foram eliminados e os remetidos ao arquivo distrital.
No universo das 23 comarcas do país, Santarém foi a sexta com mais papel tratado, a quinta que mais processos remeteu ao arquivo distrital e a 13ª que mais processos eliminou. Se forem considerados os processos eliminados e os remetidos ao arquivo distrital a Comarca de Santarém classificou-se em 11º lugar, o que representa um bom desempenho de quem está ligado aos arquivos.
Para se imaginar a enormidade deste sector, que apesar de estar nos bastidores é uma parte importante da actividade judicial, um processo de crime fiscal, como um que está à espera de ingressar nas prateleiras à porta do sótão usado como arquivo no Palácio da Justiça 1 de Santarém, pode ter mais de 150 pastas cada uma com centenas de folhas só de documentos de prova do processo. Os arquivos tratam também dos votos dos processos eleitorais e nas legislativas de 2024 juntaram-se nove metros cúbicos de material para ser destruído depois de tudo analisado e confirmado pelos juízes afectos ao processo eleitoral.
Os processos com mais de 190 anos esquecidos e os que andam de um lado para o outro
Os casos que passaram durante um século pelo Tribunal do Cartaxo, estavam esquecidos há mais de 191 anos nessa secção da actual Comarca de Santarém, criada com a reforma judiciária de 2014. São processos dos anos de 1720 a 1834 daquele tribunal que nunca remeteu processos para incorporação no arquivo distrital. Segundo a comarca, no ano de 2024 só foram incorporados estes processos no arquivo distrital.
Devido à falta de espaço há processos de “todo lado em praticamente todo o lado”, revela o administrador judiciário do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Manuel Louro. Dos 15 palácios da justiça da comarca (11 núcleos e quatro juízos de proximidade), dois não têm processos arquivados (Alcanena e Ferreira do Zêzere, que são juízos de proximidade) e seis têm apenas arquivos do próprio tribunal. De resto os outros tribunais têm processos espalhados por outros tribunais.
O Palácio da Justiça de Abrantes tem arquivos também de Mação, Ferreira do Zêzere e uma parte de Torres Novas. Além dos seus próprios processos, o Entroncamento tem processos de Alcanena; a Golegã tem do Entroncamento; Mação tem os mais antigos do Cartaxo; Santarém guarda também os do Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão; o Cartaxo tem grande parte do arquivo de Santarém, e Torres Novas tem os processos mais antigos de Abrantes.
Arquivo distrital de Santarém disputa espaço com reserva museológica e o papel dos municípios
O Arquivo Distrital de Santarém está há algum tempo a rebentar pelas costuras, disputando o espaço com uma reserva museológica da Câmara de Santarém. As dificuldades com que se debate a responsável pelo espaço, Leonor Lopes, resultam da falta de capacidade da Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas em resolver o problema e da falta de sensibilidade dos municípios. O administrador judiciário da comarca considera que as autarquias são importantes na colaboração com o poder judicial, atendendo também à proximidade de ambos com os cidadãos. Nesse sentido, Manuel Louro diz que os municípios podem em parceria encontrar espaços para aliviar a pressão dos arquivos dos tribunais.
Há um caso a servir de exemplo, que é o de Almeirim, em que o município cedeu um espaço, no antigos serviços de metrologia, para instalar o arquivo do tribunal mais novo da comarca. No caso de Santarém, bastava o município colocar as peças museológicas, que também precisam de mais espaço, noutro edifício, para o arquivo distrital poder respirar de alívio por mais uns anos. Para o administrador judiciário “não se percebe muito bem porque é que o problema se arrasta há anos com evidente prejuízo para os arquivos, para a história e para os cidadãos”. Manuel Louro sugere também que a instalação do Palácio da Justiça 3 de Santarém, na antiga Escola Prática de Cavalaria, que se arrasta há anos sem solução à vista, poderia fazer parte da resolução deste problema.