Guarda-rios renasceram em Torres Novas para limpar e proteger o rio Almonda

Profissão que foi caindo em desuso até desaparecer por completo das margens dos rios voltou a emergir em Torres Novas. Município tem dois guarda-rios ao serviço do Almonda que diariamente estão atentos a anomalias e empenham--se na remoção do lixo que vai parar ao curso de água.
Com uma extensão de 27 quilómetros no concelho de Torres Novas, o rio Almonda tem diariamente dois guarda-rios que, de carro ou a pé, percorrem alguns dos seus troços para monitorizar a qualidade da água e identificar eventuais irregularidades, como a presença de plantas invasoras, focos de poluição ou a presença de lixo. E esta última é demasiado frequente. “O lixo que apanho hoje, amanhã volta a lá estar”, lamenta Pedro Neves, o mais experiente da dupla que veio recuperar uma profissão extinta em 1995.
De galochas de cano alto até às virilhas não demora a deixar a conversa para entrar no rio, na zona do Moinho da Cova, onde sobressai um pneu vermelho afundado debaixo da ponte. “A esse não chego com estas galochas, tenho de ir buscar outras”, diz, enquanto carrega em braços um outro pneu, depois de ter saído de dentro de água com uma rede de pesca que encheu de entulho em menos de 60 segundos. “É o toalhete que se deita pelo cano abaixo, é o bidon, a cadeira, o banco de uma carrinha, o animal que morreu e que dá jeito descartar para o rio, porque assim deixa de ser visível. Há de tudo... Até um chassis já tirei de dentro do rio”, conta o zelador daquelas margens.
Para o guarda-rios, habituado a esta vida, a recolha de entulho é tão natural como beber um copo de água. “Temos de sensibilizar as pessoas de que o rio é o artista que tem de estar no espaço dele, de que um corredor ecológico - como o que ali está - não é um jardim urbano. Já se conquistou espaço de rio onde ele perdeu dinâmica, já se conquistaram algumas margens mas há muito trabalho pela frente. Somos dois mas devíamos ser três”, diz sem rodeios, na presença do vereador do Ambiente da Câmara de Torres Novas, João Trindade, que sorri perante a sugestão.
No país são muito poucos os municípios que recuperaram a profissão de guarda-rios. Além de Torres Novas há os que monitorizam o rio Leça e os que protegem os recursos hídricos do concelho de Guimarães. “Era uma profissão muito importante, mas que deixou de existir. Em Torres Novas, que tem este curso de água importante que é o rio Almonda, sempre houve uma preocupação com as questões ambientais. Já no século XIX havia protestos relativamente à poluição do rio”, refere o vereador socialista.
Colectores ligados ao rio
A Câmara de Torres Novas decidiu fazer renascer a profissão em 2019, primeiro com a contratação de Pedro Neves, que fez formação com a Agência Portuguesa do Ambiente e, no último ano, com a entrada de um segundo elemento. Um dos trabalhos de maior relevo, destaca João Trindade, tem sido o de identificar proprietários que fazem descargas e construções ilegais para o rio. “Normalmente são situações muito antigas, de pessoas que ainda têm os seus colectores ligados ao rio e não ao saneamento”, explica, sublinhando que a maioria das irregularidades já foi corrigida mas que ainda vão sendo descobertas algumas.
Além das medições regulares feitas pelos guarda-rios com sondas multi-paramétricas, que medem ao segundo parâmetros como o oxigénio ou o pH da água, o rio é monitorizado, em sete pontos distintos, duas vezes ao ano, por uma entidade acreditada e, em contínuo, através de sondas fixas instaladas em alguns troços. A qualidade da água “tem sido sempre boa ou excelente de acordo com os parâmetros legais, à excepção do caso do ano passado em que houve aumento de carga de poluição e tivemos o conhecido fenómeno da mortandade dos peixes”, recorda o autarca, lembrando também os casos pontuais de poluição da fábrica da Renova.
Um fenómeno que encaixaria, sem grande alarido, noutros tempos. Como naqueles em que Pedro Neves, nascido e criado à borda d’água em Ribeira Ruiva, corria para se banhar no rio expectante com a cor que ia encontrar naquele dia. “Ora era verde, ora azul, ou vermelho. Dependia do que se estava a produzir a montante”, nas fábricas. “Assisti a esses fenómenos da industrialização de Torres Novas, um passado que foi bastante cáustico para o Almonda, quer seja com a indústria dos couros, do papel e dos tecidos. Hoje o paradigma é diferente, apesar de não ser perfeito”, diz.
Anomalias detectadas e reportadas às autoridades
Antigo trabalhador de uma fábrica de couros para produção de estofos de automóveis, que sempre teve o rio como “paixão”, não duvida que mudar mentalidades é “um trabalho árduo”, como aquele que faz diariamente, seja a remover quilos de entulho ou plantas infestantes que estejam a impedir o curso da água, seja a estabilizar uma margem ou a tratar de um salgueiro que partiu. “A minha profissão é bastante importante porque os rios são as veias da Terra. Sem água não somos nada, nada. E as pessoas esquecem-se que todos nós fazemos a diferença”, diz, apelando também ao uso sustentável da água.
A profissão está diferente. Além de ter novo enquadramento legal tem novos desafios. “Dantes um guarda-rios era responsável por um troço que podia percorrer a pé ou numa bicicleta pasteleira num dia de trabalho”, diz. Hoje, os dois são responsáveis por todos os quilómetros daquele mesmo rio, sendo impossível percorrê-lo apeados. Também a relação com os proprietários de terrenos junto às margens era mais estreita do que hoje, em que é mais difícil identificar quem prevarica. Mas desistir não é palavra que entre no dicionário destes guardadores do Almonda. Sempre que é identificada uma anomalia, esta é imediatamente reportada ao município que, por sua vez, informa as entidades competentes, por norma, a APA e o Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) da GNR.
Novamente dentro do leito do rio Almonda - muito trabalhado com pequenos açudes que outrora permitiam os moinhos laborarem - Pedro Neves, com o seu olho clínico, não perde tempo a encontrar e remover mais entulho: latas de comida para animais, um boião de creme anti-rugas e um telemóvel antigo, entre muitos plásticos e garrafas de vidro que amontoa para levar para longe daquelas margens. “Isto que está aqui é consecutivo. Tira-se hoje e amanhã está cá. Mas é continuar a retirar para tentarmos que para o ano haja menos”, lamenta o guarda-rios, cujo trabalho raramente desperta a curiosidade e interesse de quem por ali passa. “É raro questionarem o que estou a fazer”, remata.
