A arte de tirar cortiça contada por duas gerações de Santana do Mato

Entre o estalar da cortiça e o som ritmado do machado, dois homens de Santana do Mato, em Coruche, evocam o saber antigo da tiragem à falca e à madia, numa arte que resiste à passagem do tempo e quando se assinala o Dia Nacional do Sobreiro e da Cortiça.
António Agostinho Matias Aurélio tem 87 anos e uma história de vida feita entre sobreiros, machadas e enxós. Natural de Santana do Mato, Coruche, começou a tirar cortiça aos 13 ou 14 anos, num tempo em que a arte da extracção era feita à falca e à madia, com precisão, respeito pelo montado e uma destreza que, hoje, poucos dominam. “Esta é uma arte que tem de ser aprendida, não é qualquer um que vem para aqui”, afirmou o antigo trabalhador agrícola a O MIRANTE à margem da inauguração da edição de 2025 da Feira Internacional da Cortiça (FICOR), em Coruche.
Com as mãos marcadas pelo ofício, António Matias recorda que “antigamente a cortiça era toda cortada às curvas, não se partia cortiça nenhuma”. Hoje, lamenta, já não é assim. Aos mais novos, esta vida não interessa e são poucos os que querem aprender. A técnica, diz, exige sensibilidade e atenção ao pormenor. Sabe-se que a cortiça do lado da sombra é sempre mais fraca do que do lado do sol. Ao utilizar-se a machada percebe-se a fundura a que ela chegou, porque a cortiça não tem toda a mesma grossura. Em chegando ao casco, alivia-se. Caso contrário, se ainda não chegou ao fundo, carrega-se um pouco mais de força, conforme nos descreve o tirador de cortiça. “Não podemos usar o braço tenso porque senão a machada bate e vem ter connosco. Tem o seu saber”, garante, com a autoridade de quem conhece o ofício.
Trabalhou em Coruche, Ferreira do Alentejo, Alcácer do Sal e Rio Frio, onde, em 1990, sofreu um corte profundo na mão enquanto tirava cortiça - “apanhou um tendão” e exigiu uma cirurgia de quatro horas. Desde então, carrega platina e uma cicatriz que atravessa a mão como uma medalha de guerra. Ficou viúvo há 14 anos e tem um filho. Hoje, já não trabalha no campo, mas participa em demonstrações da arte da tiragem da cortiça à falca, porque “não há ninguém que venha aqui mostrar estas coisas”.
Um trabalho duro em que
a técnica vai-se aperfeiçoando
Já Cristalino Friezas, mais conhecido por Ferro, representa uma das vozes mais jovens da profissão, mesmo tendo 47 anos. Também ele é de Santana do Mato e começou como “molheiro”, em 1996. “Em cem tiradores, se calhar há vinte com menos de 40 anos”, aponta, revelando a escassez de continuidade nesta arte. “O meu avô era corticeiro, os meus tios foram também. Gosto disto”, diz. Mas reconhece que o caminho não é fácil. “É preciso, em primeiro lugar, força de vontade porque é um trabalho duro. E depois a técnica vai-se aperfeiçoando. Cada árvore é uma árvore. Já tirei uma árvore dois anos seguidos e nunca é a mesma coisa”, conta.
A idade da árvore, o clima e o próprio tirador influenciam a qualidade da cortiça. A cortiça pode ser mais delgada se não chover, ou mais grossa se chover mais. O ciclo de nove anos entre tiragens poderá vir a ser alargado, alerta, porque a cortiça deixa de ter calibre e até para as fábricas começa a ser difícil.
Para além da cortiça, Cristalino Friezas tem trabalho todo o ano, intercalando a cortiça, com a lenha e as pinhas. Reconhece que o preço da cortiça está a baixar e começa a ser difícil. Apesar de Coruche manter um montado vasto, o corticeiro assinala o avanço dos pinheiros e o recuo dos sobreiros, com impacto directo no clima. “Se plantarmos sobreiros, muitos deles morrem. Precisamos sempre é de chuva”, afirma.
Com uma filha de 13 anos, diz que gostava que ela seguisse as suas pisadas, mas não tem ilusões. “Sei ver que no futuro as máquinas substituem o trabalho das pessoas. Hoje já se nota alguma vantagem: abrem a cortiça e nós é só chegar lá e tirar. Infelizmente, para o nosso mal”, explica. O corticeiro resume o que tantos colegas repetem. Trata-se de um trabalho muito cansativo e a juventude não quer trabalhar, quer empregos ou receber subsídios. A tiragem da cortiça é arte, ciência e sobrevivência. Enquanto o montado resistir, há quem insista em manter viva a tradição.
