Filipa Machado e Conceição Ramos deixaram carreiras estáveis para dar aulas de Português

Filipa Machado e Conceição Ramos deixaram carreiras consolidadas na banca e na administração pública para se dedicarem ao ensino do Português. Ambas mudaram de vida em plena idade adulta e dão agora aulas em escolas públicas. Num contexto de escassez de professores, são exemplo de quem escolheu o ensino por vocação.

Numa altura em que escasseiam professores em várias escolas do país, Filipa Machado e Conceição Ramos decidiram, por vontade própria, trocar carreiras bem estabelecidas por um quadro e uma sala de aula. O gosto pelo ensino não as deixou demover pelas notícias que envolvem a instabilidade da carreira docente e resolveram arriscar.
Filipa Machado, 44 anos, é professora de Português há dois anos, depois de ter deixado para trás uma carreira de 18 anos na banca, como assessora financeira. Na infância, recorda-se de ter jeito para o desporto, nomeadamente natação, mas os pais não a incentivaram a seguir essa área. O pai e a avó eram professores de Português, estimados na comunidade. Ao mesmo tempo, a leitura e a escrita faziam parte do seu dia-a-dia, assim como a vontade de seguir uma carreira no ensino.
A residir em Tomar, tirou o curso superior de Estudos Portugueses em Coimbra, mas confessa que, mal entrou no curso, sentiu que não ia ter colocação como professora. Ainda assim, estagiou um ano para concluir a licenciatura, mas depois inscreveu-se em Jornalismo, curso que acabou por deixar ao fim de dois anos, quando o avô faleceu e deixou de poder pagar o quarto. Tirou uma pós-graduação em Comunicação e Marketing em Leiria, onde conheceu o director de um banco que a incentivou a tentar essa área. “Achava que era um mundo cinzento e eu sou muito comunicativa. Não tinha a ver com o meu perfil, mas experimentei, também pressionada pelos meus pais, que diziam que tinha de começar a trabalhar”, relata.
Das propostas que teve, aceitou ingressar no BPI e trabalhou em agências do banco em Tomar, Caxarias e em Lyon (França), onde trabalhou com a comunidade portuguesa imigrante. Engravidou e regressou a Portugal. Quando nasceu o segundo filho, a carreira passou para segundo plano. No banco, os colegas tratavam-na por professora e pediam-lhe ajuda para corrigir e validar os e-mails. A forma que tinha de manter contacto com o ensino era através das explicações que dava aos sábados.
Quando fez 40 anos, achou que estava na altura de sair da banca, mas não aceitaram a sua rescisão. Passou para a banca on-line, mas não gostou da experiência. “Não interessava se era boa pessoa. Nas aulas isso é valorizado, os alunos vêem se és boa pessoa — isso é importante em todas as profissões”, defende. Em 2023 aceitaram a sua saída e, logo no ano lectivo 2023/2024, concorreu para dar aulas numa escola profissional na Sertã. A experiência correu muito bem e sentiu-se valorizada e validada pelos seus pares. Este ano deu aulas de Português na Escola Básica e Secundária de Vialonga, com deslocações diárias de comboio desde Tomar — no total, cinco horas por dia em transportes. “Foi duro e não vou voltar a fazer o mesmo. Os meus filhos têm oito e doze anos e não os acompanhei na escola. Para onde for agora, levo os meus filhos comigo”, sublinha.
Filipa Machado concorreu para a zona de Tomar e Algarve, onde conseguiu colocação. A ideia é fixar-se no Algarve e mudar de vida, até porque considera que o paradigma, hoje em dia, está a mudar e as pessoas valorizam mais a realização do que a estabilidade.
Deixou a administração pública e reencontrou-se na escola
Conceição Ramos, 55 anos, sempre quis ser secretária e acabou por o ser após ter tirado o curso de Secretariado. Gostava de escrever poesia na juventude e de ler, e relembra, em conversa com O MIRANTE, os ralhetes da mãe para apagar a luz — mas continuava a ler debaixo do edredão com uma lanterna. Trabalhou no restaurante dos pais, no Alentejo, e aos 20 anos mudou-se para Lisboa, onde começou a trabalhar num escritório de contabilidade. A partir daí, teve vários empregos em escritórios, até ter concorrido para o Hospital Pulido Valente, em Lisboa, onde esteve 17 anos: primeiro na gestão de doentes e, mais tarde, a secretariar os directores de um dos serviços.
Ainda antes de trabalhar no hospital, licenciou-se em Português-Alemão com a ideia de experimentar o ensino. Estagiou numa escola na Amadora, no ano em que o filho nasceu, mas nessa altura desistiu da carreira docente, porque tinha um bebé nos braços e precisava de estabilidade. Saiu do hospital após ter sido agredida pelo pai de uma criança que tinha sido operada. “Costumo dizer que estava no local errado, à hora errada. E se já tinha vontade de ir embora, a partir desse episódio já não conseguia ir trabalhar — tinha medo. Naquele momento percebi que não tínhamos segurança nenhuma. Mesmo não estando em contacto com o público, bastava virem à sala de espera e as coisas aconteciam”, relembra.
Conceição Ramos esteve três meses de baixa e rescindiu o contrato com o hospital. Concorreu para o Instituto dos Registos e Notariado (IRN) e trabalhou em Vila Franca de Xira durante nove meses. Depois, passou para os Recursos Humanos dos serviços centrais do IRN, no Parque das Nações. Ao mesmo tempo, já dava aulas em regime pós-laboral a estrangeiros adultos, em Rio Maior e na Amadora, em regime de substituição.
Quando, pela primeira vez, ficou colocada no concurso para dar aulas, pediu licença sem vencimento. Deu aulas durante um ano em São João da Talha e, este ano, na Escola Básica e Secundária de Vialonga. Fora das aulas, a professora de Português dedica-se ao artesanato e recomeçou a cantar o fado. Chegou a fazer parte de um grupo, no Alentejo, que abria os concertos de Marco Paulo e das Doce. Inscreveu-se na Grande Noite do Fado, foi seleccionada e apadrinhada, em directo na rádio, pela fadista Isabel Vitorino. Este ano, cantou fado nas aulas, para surpresa dos alunos, quando leccionava o poema da varina.
Portugal precisa de 39 mil professores até 2034
As escolas precisam de recrutar 39 mil professores até 2034. O anúncio foi feito pelo ministro da Educação, Ciência e Inovação, Fernando Alexandre, que sublinhou que, nas próximas décadas, se vão aposentar anualmente cerca de 4.000 professores. Cerca de dois terços dos que hoje dão aulas têm 50 anos ou mais.