João Inácio “Janica” e a arte de manter vivas as tradições do Ribatejo

Entre picarias, cavalos e touros, “Janica” é o rosto de uma profissão que luta para sobreviver num mundo que já pouco sabe o que é a campinagem. O MIRANTE foi conhecer uma parte da rotina diária do campino homenageado nas festas de Samora Correia 2025.
Natural de Vila Franca de Xira e criado na Herdade da Baracha, em Samora Correia, João Inácio “Janica” cresceu no ambiente rural, trocando aos 14 anos a escola para se começar a destacar nas artes da campinagem. Representando a quarta geração de uma família de campinos, os 49 anos fazem com que se considere “muito novo” para homenagens, dado que é a sua estreia nas condecorações, mas ficou feliz e sentiu-se honrado pela iniciativa da ARCAS em reconhecê-lo como campino homenageado das festas de Samora Correia 2025.
O dia-a-dia de João Inácio começa cedo e acaba tarde. A seu cargo tem duas herdades: a Herdade Torre do Ferrador, no Biscainho, e a Herdade Sesmarias dos Pinheiros, na Branca, onde dá continuidade ao trabalho feito na anterior. Ambas pertencentes à ganadaria Herdeiros Dr. António Silva, onde se fixou há mais de duas décadas, num percurso marcado por um conhecimento profundo da arte da campinagem e do manejo do gado bravo, consolidando-se como maioral da ganadaria e responsável por mais de 350 cabeças de gado.
O processo é longo e envolve paciência, começando pela avaliação da bravura das vacas, para que possam gerar o melhor toiro, procedendo posteriormente à cobrição das mesmas com sementais criteriosamente seleccionados, numa tradição herdada de várias gerações. Quando os bezerros nascem são mantidos na Herdade Torre do Ferrador durante o primeiro ano de vida, onde aos poucos vão deixando a amamentação e começam a conviver apenas com os restantes machos. Assim que chegam ao primeiro ano de vida e passam de bezerros a novilhos, são transferidos para a Herdade Sesmarias dos Pinheiros, onde num ecossistema mais plano e com várias sombras, são desenvolvidos e treinados até aos quatro anos de idade, altura em que começam a ser enviados para várias corridas de toiros pelo país e não só. “Já fomos a Espanha e França, mas a melhor corrida que me lembro foi em Angra do Heroísmo”, afirma a O MIRANTE.
João Inácio faz “tudo e mais um pouco” e conta com a ajuda da mulher, marcando bezerros, treinando toiros, reparando vedações e gerindo a própria dieta dos animais. Em dias de corrida com os exemplares da casa, chega até a recolher os bovinos em plena praça, numa demonstração do seu domínio e respeito pelo trabalho que envolve toda a festa brava. “No sábado sou homenageado em Samora Correia e no domingo vou recolher os toiros na corrida de Coruche”, afirma, ciente que a época das festas populares é sempre a mais atarefada do ano.
O criador reconhece que o verdadeiro valor de um toiro só é realmente provado quando este é lidado, recordando que nem sempre o trabalho e investimento compensam. “Também exploramos um pouco o mercado das largadas e da carne, mas não são tão rentáveis como as corridas”, confessa, admitindo que a profissão nem sempre tem o retorno esperado e é a paixão que o vai guiando nos mais de 30 anos que leva em actividade. Um percurso que começou muito jovem, ainda ao lado do pai, numa época em que a mecanização não se tinha ainda instalado e o ofício do campino era muito mais visível na vida quotidiana do Ribatejo.
O campino já experimentou as várias artes ligadas à tauromaquia, aventurando-se até como recortador e toureando a pé em iniciativas solidárias, mas nega, com um sorriso, ter passado ao lado de uma carreira no toureio. Não foi por isso que a vida o deixou escapar de alguns sustos no quotidiano. “Já me magoei algumas vezes e com gravidade, mas faz tudo parte do ofício”, admite, enquanto alimenta o gado, rodeado de várias vacas bravas. Os animais estão acostumados à sua presença e associam-no automaticamente à alimentação, mas nunca se pode confiar demasiado, pois a natureza destes animais impõe respeito, adianta.

A vida de campino e como atrair jovens para a profissão
A vida de “Janica” ganha outro brilho durante as festas populares, mesmo com responsabilidades acumuladas em quase todas elas. As roupas de uso diário são trocadas pelas cores vibrantes do traje de campino, que para si é sinónimo de dias de convívio e rever velhos amigos, um dos grandes prazeres da sua vida, a que alia ainda a caça, outro gosto que nasceu cedo e nunca largou. Durante o Verão, são inúmeras as iniciativas em que participa a cavalo do seu Fiorde, em provas de picaria ou desfiles. Momentos que foram muito mais participados noutros tempos e cujo futuro é motivo de preocupação.
João Inácio admite que a promoção do quotidiano rural e do campino deviam ter maior divulgação junto das gerações mais jovens. “Com a proximidade que existe a toda esta cultura, creio que os municípios da região deviam promover visitas das escolas a ganadarias e a este estilo de vida”, afirma. São poucos os jovens que chegam para a sua responsabilidade a nível profissional, aparecendo por vezes algum estagiário ou aprendiz que acaba por ficar por pouco tempo. Assume que a vida rural pode não ser a mais apelativa para as mais recentes gerações, mas tem de existir um trabalho que tente cativar os mais novos a entrar no ramo, preservando assim a continuidade da tradição ribatejana.
A rotina, marcada por longos dias no campo, contrasta com os momentos festivos, quando enverga o traje tradicional e participa nas festas e corridas da região. O seu trabalho reflecte um compromisso diário com a tradição e a cultura taurina ribatejana, num tempo em que esta herança enfrenta o desafio da continuidade, e em que João Inácio personifica a ligação viva entre passado e presente, sendo reconhecido popularmente como um dos mais exemplares campinos do país.