Sociedade | 11-10-2025 21:00

Água das Casas: uma aldeia histórica de Abrantes onde habitam menos de 30 pessoas

Água das Casas: uma aldeia histórica de Abrantes onde habitam menos de 30 pessoas
José Martinho Gaspar, Filipa Francisco, Susana Domingos Gaspar e Miguel Canaverde - foto O MIRANTE

Nas margens da albufeira de Castelo do Bode, uma aldeia ergue-se entre memórias submersas e histórias que resistem ao tempo. Água das Casas não é apenas um lugar, é o reflexo de tradições que se recusam a ser esquecidas, como a Mostra de Água das Casas, um encontro de cinema, dança, literatura e artes visuais que celebra a memória da comunidade.

No coração do concelho de Abrantes, junto a uma das margens da albufeira de Castelo de Bode, há uma pequena aldeia que carrega consigo memórias de perda e resistência. Água das Casas é hoje habitada por menos de três dezenas de pessoas, mas nos últimos dias de Setembro as ruas enchem-se de vozes, música, dança e histórias partilhadas. A segunda edição da Mostra de Água das Casas, organizada pela associação Mundo em Reboliço e com curadoria da coreógrafa Filipa Francisco, transformou este território esquecido num palco de encontro entre gerações, arte e memória.
Mais do que um festival, a Mostra é um gesto de cuidado, uma forma de devolver visibilidade e energia a uma pequena comunidade profundamente ligada às suas raízes. Quem nasceu em Água das Casas guarda recordações de tempos duros. Ernesto Serra, um dos moradores da aldeia, vive em Lisboa desde criança. Aos 50 anos voltou, reconstruiu uma casa e hoje regressa “sempre que pode”: “quando estou em Lisboa, o que encontro de melhor lá é o caminho para cá”, diz Ernesto a O MIRANTE com um sorriso. Recorda uma infância marcada pela pobreza e pela ausência de brinquedos, pois eram uma “família humilde com seis irmãos”. Um dos passatempos de que mais desfrutavam era tomar banho na albufeira: “nós éramos seis irmãos, de famílias muito humildes. Não havia brinquedos, mas havia o rio, onde nadava e inventava jogos com os meus irmãos. Era a nossa alegria”, explica. Hoje regressa acompanhado pelos dois netos, que já fazem parte desta herança. “Eles são a força disto. Tenho um de 10 anos e outro de 15 e gostam de vir, passam cá parte das férias. Já começam a entender o valor que isto tem. Assim a tradição não se perde”, acrescenta.
Morador e escritor, José Martinho Gaspar lançou na Mostra o livro “Uma Amostra”, uma recolha de histórias locais. “Já tinha escrito sobre o património em 2015. Desta vez quis ir às estórias, às memórias pequenas, mas que fazem o tecido da aldeia. Foi um processo de falar com as pessoas, recordar o que já conhecia e organizar numa sequência que fizesse sentido para o mundo rural. Foi como um ciclo que escrevi este livro”, refere ao nosso jornal. José Martinho viveu em permanência na aldeia só até aos 18 anos, mas nunca deixou de regressar. Recorda que, durante a sua infância, ainda não havia electricidade e que foi apenas aos 13 anos que este bem essencial chegou à aldeia. “Hoje a aldeia mudou muito, mas também perdeu gente. Já não chegam a 30 os que vivem cá todo o ano. No entanto, aos fins-de-semana podemos ser mais de cem”, garante, valorizando o espírito comunitário que se sente na aldeia.
Esta Mostra começou em 2024 com aquilo a que a curadora chamou a Mostra Zero, sendo apenas uma “acção de mediação”, onde foi pedido às pessoas que trouxessem um objecto que lhes falasse do passado, do presente e do futuro: “reunimo-nos à volta da fonte e foi um momento de encontro. O objectivo era mostrar que este projecto seria feito em conjunto com a comunidade”, explica Filipa Francisco. Em 2025, a proposta ganhou corpo e intensidade, integrando um mural, um filme, uma peça de dança, um livro e leituras públicas que deram vida às histórias locais. No mural pintado por Anacleto Guia surgem figuras do quotidiano de Água das Casas, como o barqueiro que transportava pessoas antes da barragem, os agricultores, os animais e a paisagem.
A dança de Susana Domingos Gaspar inspirou-se no som das chaves das casas perdidas com a subida das águas, mas também símbolo universal de território e pertença. O filme de Miguel Canaverde envolveu as crianças e jovens da aldeia, que experimentaram filmar, actuar e contar as suas próprias histórias. Para o realizador esta experiência foi mais do que um trabalho artístico, já que tinha participado na Mostra Zero e, dessa forma, já possuía uma ligação com a aldeia.
Hoje Água das Casas é mais do que um lugar físico: é guardiã de uma herança colectiva, onde moradores e visitantes, que regressam ou chegam em busca de história e tradição, encontram uma aldeia construída sobre perdas, mas que persiste com vitalidade. A cada fim-de-semana, quando as crianças correm pelas ruas e os mais velhos contam histórias, o passado submerso volta a emergir — não apenas das águas, mas nas vozes de quem se recusou esquecer.

Mostra de Água das Casas transformou a pequena aldeia de Abrantes num encontro de cinema, dança e partilha de histórias - foto O MIRANTE

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