Ouro Líquido quer travar o abandono e valorizar o olival tradicional

No território do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, uma associação e um projecto trabalham para revitalizar o olival tradicional e promover as variedades autóctones e o azeite aí produzido. Luís Duarte Melo é o presidente da Associação para a Promoção do Olival e Azeite de Aire e Candeeiros, que dia 18 de Outubro organiza o Festival Primeira Colheita 2025 – Encontro da Comunidade Ouro Líquido.
A área de olival reduziu para praticamente metade nos sete concelhos que integram o Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros (PNSAC) nos últimos trinta anos, o que ilustra o abandono que essa cultura ancestral tem vindo a sofrer. De 25 mil hectares de olival passou-se para 13 mil hectares, segundo números do Instituto Nacional de Estatística. Uma realidade que a APOAC – Associação para a Promoção do Olival e Azeite de Aire e Candeeiros e o projecto Ouro Líquido querem reverter com diversas iniciativas que visam a defesa e promoção do olival tradicional e do azeite desse território. Exemplo disso é o Festival Primeira Colheita 2025 – Encontro da Comunidade Ouro Líquido, agendado para dia 18 de Outubro, em plena serra, na freguesia de Alvados, concelho de Porto de Mós. O programa convida a conhecer de perto o trabalho dos produtores locais, através de mostras e provas de azeite, momentos de aprendizagem com especialistas e um jantar temático com os azeites em destaque.
Luís Duarte Melo, um homem ligado à gestão, consultoria e marketing que reparte o seu tempo entre o Porto, onde reside, e a sua quinta nas proximidades de Alcanede, tem sido o principal rosto desse movimento em defesa do olival tradicional. A APOAC - constituída há um ano e com 65 associados entre produtores, pessoas da academia e do olivoturismo -, tem-se afirmado na promoção do olival de Aire e Candeeiros, apoiando os produtores a cuidar do olival e organizar a produção, valorizando os azeites e potenciando o olivoturismo, conferindo visibilidade às marcas dos associados e dando a conhecer o valor de um produto que é, ao mesmo tempo, económico, cultural e identitário. Nos concelhos de Alcanena, Alcobaça, Ourém, Porto de Mós, Rio Maior, Santarém e Torres Novas, o olival faz parte da paisagem, da cultura e da memória colectiva. O território serrano, com solos calcários, clima particular e variedades autóctones, como a galega e a lentrisca, garante aos azeites características únicas, que os distinguem e lhes dão notoriedade. Nesse âmbito foi criada a marca registada Olivedos do Carso, com selo de certificação.
A comunidade Ouro Líquido tem vindo a impor-se como um movimento em crescimento, que envolve produtores, consumidores, gastrónomos, investigadores, municípios e a ADSAICA - Associação de Desenvolvimento das Serras de Aire e Candeeiros, agregando já cerca de 400 pessoas e entidades. Pretende representar uma nova dinâmica de cooperação e valorização dos azeites locais, procurando transformar um produto tradicional num motor de desenvolvimento económico e turístico. “Olival abandonado é mato a crescer, é o risco de incêndio que aumenta, são as pequenas economias locais que desaparecem, é o lagar que fecha… Além disso, o olival e o azeite fazem parte da personalidade e identidade da região”, destaca Luís Duarte Melo, presidente da APOAC e líder do projecto Ouro Líquido.
O projecto Ouro Líquido começou em fase piloto nos concelhos de Alcanena e Torres Novas, “sempre com muita dinâmica participativa” de produtores, lagareiros e outros agentes, como empresas, academia e entidades públicas. Daí ter-se alargado aos sete concelhos do PNSAC. “As pessoas perceberam que é preciso mudar a forma de trabalhar, de inovar num sector que mudou drasticamente nos últimos trinta anos, por via do desenvolvimento do olival moderno e intensivo, muito competitivo, enquanto o olival tradicional não se modernizou”, refere Luís Duarte Melo.
O olival tradicional tem vindo a ser abandonado. É uma realidade difícil de contrariar? Há um conjunto de razões que levaram a isso. Estamos num mundo dinâmico e muito competitivo, em constante mudança. Não foi feito um trabalho, em geral, de esforço e adaptação às novas realidades, nomeadamente à evolução do olival moderno, que é um fenómeno sobretudo do Alqueva. Há também a questão demográfica e a inviabilidade económica do modelo tradicional de olivicultura, como era feito há 30, 40 ou 50 anos. Temos que reencontrar um modelo que seja sustentável economicamente e para o ambiente. Produzir um litro de azeite neste contexto tem um custo muito mais caro do que produzir um litro de azeite no Alqueva.
Como pretende convencer as pessoas a apostar no olival? Nós não queremos convencer ninguém. Queremos é dizer aos operadores do sector que para continuarmos no mercado e contribuir para que o ritmo de abandono do olival não continue nestes termos temos, que ir para outro modelo de negócio, dirigido para uma estratégia de diferenciação de produto. Não podemos ganhar a guerra do preço, temos que ir pela diferenciação, de encontrar nichos de mercado na exportação que valorizem este tipo de produto e as nossas variedades autóctones. Achamos que há espaço para tudo, para o olival super intensivo e para o olival tradicional. Cada segmento deve ser tratado de forma autónoma.
O olival intensivo veio mudar o paradigma da produção de azeite em Portugal. Esse é o caminho certo ou apenas o mais lucrativo? Cada um faz o seu papel. Os operadores e associações ligados ao olival super intensivo têm que fazer o caminho deles. Vivemos numa economia de mercado que deve ser regulado, o apoio aos sectores mais fragilizados deve estar nas políticas públicas, mas cada um deve fazer o seu caminho. Como presidente da APOAC, puxo pela realidade olivícola que corresponde ao nosso território, onde predomina o olival tradicional. O super intensivo preocupa-se com a eficiência produtiva e retorno rápido do investimento, com produção a granel para exportação. Nós temos uma agenda de problemas e desafios diferentes.
O olival tradicional tem futuro? O olival tradicional é aquilo que quisermos que seja. Tem que ser mais rentável e integrar outros valores. A componente económica é fundamental, mas não conseguimos ter azeite a competir em preço com o azeite Gallo.
Hoje falar-se de azeite é também falar do preço a que o produto chegou nas prateleiras dos supermercados. Para quem compra, qualquer produto está sempre caro; e para quem vende está sempre barato.
Mas o azeite vem sempre ao de cima quando se fala de produtos caros. Sim. Estas oscilações de preços têm muito a ver com a produção efectiva de Espanha, que representa à volta de 60% da produção mundial de azeite. Quando a produção em Espanha é inferior, os stocks de azeite baixam e o preço sobe. Foi o que aconteceu em 2023, quando houve duas campanhas sucessivas muito más. O ano passado a campanha foi muito melhor e isso contribuiu para o preço a granel baixar. Influencia muito o preço a que o azeite chega ao consumidor final.
A contrafacção ou adulteração de azeite para fins comerciais tem expressão ou são apenas casos isolados? Tem expressão, maior quando o preço do azeite está mais alto. A tentação é maior. E isso acaba por ser um factor de distorção da concorrência em relação aos azeites de qualidade. É uma má imagem para o sector e gera desconfiança. E só há dois caminhos para a combater: a fiscalização, que tem que actuar, e um lado mais difícil e demorado que tem a ver com o consumidor. Enquanto continuarmos a comprar garrafões de azeite sem marca, sem responsabilidade do produtor, que é um hábito muito enraizado, é mau.
Ainda há muita candonga neste sector? Sim. A gente vê no Facebook a anunciarem azeite fantástico a metade do preço. Felizmente a ASAE vai actuando e fazendo apreensões. As pessoas devem evitar comprar azeites que não tenham rótulo de um produtor licenciado.
A poluição associada aos lagares é um estigma sobre o sector? Não diria que é um estigma, é uma realidade. Muito há a fazer para valorizar o produto. As gerações anteriores resolviam o problema dos bagaços de uma forma muito positiva e a bem da chamada economia circular. Integravam os bagaços de azeitona em compostagem com outros desperdícios e utilizavam para fertilização dos solos. Isso é um problema que numa olivicultura de menor dimensão, como a nossa, não tem tanta dimensão, embora exista. Há muita coisa a fazer para que a academia, a investigação, as empresas consigam encontrar novas soluções para valorizar este produto.
Os lagares tradicionais ainda existem ou tendem a desaparecer? Ainda existem alguns, mas hoje, para produzirmos azeites de excelente qualidade, temos que ir para a tecnologia chamada em contínuo. Porque basicamente garante temperaturas de extração mais baixas e ausência de contacto com o oxigénio que deteriora o azeite.
Como está o associativismo no sector e até que ponto o projecto Ouro Líquido pode contribuir para o reforçar? A APOAC surgiu como um movimento espontâneo dos associados que perceberam que teriam que se agrupar e trabalhar de forma organizada. Consensualizamos fazer uma associação sem fins lucrativos, sem objectivos de natureza comercial, tendo objectivos de marketing, de promoção do sector, das marcas de azeites dos associados. Andamos a ponderar ir mais à frente na cadeia de valor, criar uma estrutura que possa vir a ter algum papel na comercialização dos produtos. A APOAC surgiu como instrumento para concretizar na prática o projecto Ouro Líquido junto dos agentes económicos. Sem agentes a mexer no terreno, dos produtores aos lagares, isto não passaria do papel e das boas intenções.
Como surgiu a sua ligação ao olival e ao azeite? As raízes ajudaram muito, evidentemente. Mas trabalhei muitos anos em empresas na área internacional, em cerveja, como director internacional da Unicer, viajei pelo mundo inteiro no marketing de cerveja, de vinhos, de cafés, de águas minerais, do azeite. Se calhar os presidentes de Alcanena e de Torres Novas acharam que este perfil era o adequado para o projecto Ouro Líquido. Tecnicamente, não sou um especialista do olival e do azeite. A minha experiência é de liderança, de gestão de equipas, de marketing, de direcção de empresas em contexto internacional.
Um homem apegado às raízes
Luís Duarte Melo, 62 anos, nasceu em Santarém mas toda a família é de Alcanede, freguesia onde tem casa, na Quinta da Franca, que é um ponto de encontro da família. É casado, tem quatro filhas e sete netos. É um estudioso da história, raízes e tradições locais com diversa obra publicada sobre a terra, personalidades locais e instituições. Já vai no sétimo livro. Está ligado ao movimento associativo também como presidente da mesa da Santa Casa da Misericórdia de Alcanede. Licenciou-se em Engenharia Agrícola e depois fez Economia Europeia e Gestão de Empresas. É consultor empresarial, como profissional independente. Antes, fez a sua vida profissional sobretudo na área de gestão de empresas, nas áreas de produtos de consumo, de exportação, em vários sectores.
Em 2023, foi desafiado pelos presidentes dos municípios de Alcanena e de Torres Novas para liderar o projecto Ouro Líquido num território onde a oliveira está presente por todo o lado, mas com o olival em progressivo abandono. A APOAC foi criada depois como resposta dos operadores mais dinâmicos e que perceberam que para se fazer alguma coisa é importante estarem organizados. Luís Duarte Melo está a trabalhar actualmente também no processo de classificação do olival serrano e do azeite como património imaterial.
Quanto à freguesia de Alcanede, onde também tem oliveiras, reconhece a resiliência e capacidade empreendedora das suas gentes e a pujança económica no contexto do concelho de Santarém, que justificavam melhores acessos à cidade. “Muita coisa foi feita, mas muita coisa há ainda a fazer, diz sobre a freguesia. Considera que o grande desafio da freguesia é conseguir fixar pessoas que acrescentem valor e que tragam novas ideias, referindo que muitos jovens acabam por ir viver para Rio Maior ou Leiria, por exemplo.
Luís Duarte Melo tem orgulho nos contributos que tem dado para se conhecer melhor a história de Alcanede e neste momento está a trabalhar num livro sobre figuras e instituições da história de Alcanede e de Pernes.