Outubro Rosa: é preciso chamar o cancro pelo nome
Maria Jorge e Rita Alfacinha não se conhecem mas partilham este artigo e um diagnóstico de cancro da mama. Sem pudores, abordam as dificuldades que viveram durante os tratamentos, as mudanças na imagem, o choque e medo do desconhecido. No mês dedicado à sensibilização do cancro da mama, não esquecem quem as amparou e destacam a importância em se confiar nos profissionais de saúde.
Aos 43 anos, com duas filhas pequenas e numa altura em que estava a tentar engravidar, Maria Jorge foi diagnosticada com um cancro da mama triplo negativo, o mais grave. A notícia, que veio num dia frio de Dezembro, congelou-a. Havia a possibilidade de a doença ter metástases e estar pelo corpo todo, incluindo ossos e sangue. “Não podia, não podia ser. Sentia-me tão bem, estava a fazer análises para engravidar e estava tudo bem”. Mas com um diagnóstico de cancro no estágio VI ganhou de imediato “a consciência de que o fim podia estar perto”, ao mesmo tempo que deixava cair por terra o sonho de voltar a ser mãe. Estava no bloco de partos do Hospital de Santarém, um lugar cheio de significado e boas memórias - tinha sido ali que se tinha tornado mãe - a ouvir que tinha cancro. Lembra-se de o companheiro, a seu lado, perguntar à médica se ela ia morrer e de ouvir a resposta que a tranquilizou: “o hospital está aqui para dar vida, não morte”.
Saiu daquele lugar, que acabava de ganhar um novo significado, cheia de medos e incertezas. Sem saber como ia dizer às filhas que tinha cancro. Atormentava-a pensar que podia morrer, que os seus pais iam ficar desamparados e que o seu companheiro ia ter de criar as filhas sozinho. “Comecei a perceber que fazia mais falta na vida das pessoas do que pensava. E então comecei a preparar tudo. Meti o Luís nos grupos da catequese e do colégio. Etiquetei as gavetas todas com o tipo de roupa que lá estava e a que filha pertencia. Depois fiquei mais descansada, à espera dos resultados que faltavam”. O pior cenário não se revelou. O cancro estava circunscrito à mama. “Aí mudei o chip. Contei às minhas filhas e pensei: vou sobreviver a isto e vou fazê-lo de forma a que não fique um trauma para elas nem para ninguém”, conta.
“Não se aprende nada com o cancro”
Maria Jorge já tinha vivido de perto com o cancro da mama na família. A mãe tinha lidado com a doença, mas de origem hormonal, há 15 anos. Decidida a enfrentar a doença com a positividade que lhe é característica, iniciou a quimioterapia intravenosa e, assim que o cabelo começou a cair, à terceira sessão, rapou-o. O companheiro fê-lo primeiro, num gesto de apoio. “Precisei muito dele. Foi o meu braço direito e o esquerdo. Foi o chão, o tecto e as paredes. Foi tudo. Deu-me banho, punha-me creme, fazia-me massagens, quase que andava comigo ao colo”, diz.
Houve dias duros, em que os efeitos secundários da quimioterapia venceram a vontade de se manter activa. “A quimioterapia é como ir ao inferno e vir. Não no início, mas passados seis meses, o corpo gritava: já chega!”. As dores eram muitas, a visão ficava turva, a prisão de ventre era um incómodo constante, a libido tinha diminuído e o paladar desaparecido. Mas não foi sempre assim ao longo das 16 sessões. Havia dias bons, quando os efeitos atenuavam ou desapareciam. E, mesmo nos maus, a explicadora de Matemática “precisava sentir que a vida continuava e obrigava o corpo a reagir”, não tendo deixado de trabalhar. Depois da quimioterapia veio a cirurgia, a radioterapia e, por fim, a imunoterapia que só termina em Janeiro próximo.
Maria Jorge diz, com firmeza, não perdoar o cancro pelo tempo que lhe roubou, pelas dores que lhe causou, por lhe ter tirado a possibilidade de voltar a ser mãe devido à idade que tem e ao tempo que teria de esperar para que a “toxicidade saia do corpo”. Não consegue ter uma visão romântica da doença. “Não se aprende nada com o cancro, nada. Não há nada de positivo em se estar com esta doença. Não dei mais valor à vida porque tinha cancro, já dava. Conheci profissionais incríveis no hospital em quem confiei e que me deixaram muito descansada, é verdade, mas preferia não os ter conhecido”, afirma com frontalidade.
Como os cancros, também a forma como se vive e encara a doença difere de pessoa para pessoa e, neste caso, a de Rita Alfacinha é diferente. Diagnosticada com um cancro de mama hormonal em Dezembro de 2023 e com os tratamentos concluídos a 15 de Junho deste ano, diz que o cancro veio provar que “a vida pode mudar num instante”, a ensinou a “valorizar as coisas boas” e a não dar importância a outras. “Quando passamos por um cancro, aprendemos também a confiar em desconhecidos que se tornam parte da nossa família afectiva. Acho que muita gente vai a medo, mas temos de confiar nos médicos e não ir para a Internet fazer perguntas”, diz em jeito de conselho.
“Esta é uma luta que pode ser inglória”
À primeira impressão estes dois testemunhos parecem estar de costas voltadas, mas são muitos os contornos que os unem. A começar pelo facto de ambas terem descoberto os nódulos por mero acaso e por não se acharem guerreiras ou heroínas. “Percebo que as pessoas queiram associar termos bélicos a esta doença, mas não me senti nada uma guerreira, senti-me uma pessoa que tinha uma doença que tinha de tratar e continuar a viver. Até porque esta é uma luta que pode ser inglória”, afirma Rita. Maria concorda: “Sei que as pessoas não dizem por mal, mas chamarem-nos guerreiras é terrível. Então e as pessoas que passam por isto e morrem? São menos guerreiras? Lutaram menos? Não, não é por se lutar muito que se vence o cancro. Tive a sorte de o meu corpo responder ao tratamento e de aguentar todas as sessões. E é mesmo disso que se trata. Ou tens sorte ou azar. Não está nas nossas mãos”, refere.
Quando se recebe um diagnóstico de cancro, o plano de tratamento - se incluir quimioterapia - vem acompanhado de uma lista com sintomatologia associada e fármacos para ajudar a minorá-la. Rita Alfacinha, gestora de marcas a residir em Vila Franca de Xira, diz-se uma mulher de sorte neste campo, depois de ter lido aquele inventário e ter achado que “o melhor era ir logo comprar um caixão”. Foram 15 sessões realizadas no Hospital de Vila Franca de Xira, sem efeitos secundários, à excepção de alguma fadiga e paladar metálico. “Tive a sorte de ter tido uma santa quimioterapia”, diz, contando que no meio desse processo até conseguiu perder a fobia a agulhas e destacando a “humanidade, o carinho e atenção” com que foi tratada pelos profissionais de saúde.
Antes que fosse a doença a tirar-lhe o longo cabelo encaracolado, Rita cortou-o curto, mas não bastou. Ao fim do segundo tratamento começou a cair e pediu ao companheiro que lhe rapasse a cabeça. “Sei que lhe custou, mas pedi-lhe. Somos os dois muito positivos e ele esteve sempre lá a ajudar e a puxar por mim. Ver-me sem cabelo fez-me confusão nos primeiros dias, depois esqueci-me que estava careca”. Por opção não usou turbantes nem perucas, mas tem consciência que aquela imagem mexia com algumas pessoas. “Ouvia muito: oh Rita mas está tudo bem? E eu respondia: está, tenho cancro. E dizia-o como quem diz que partiu uma perna”. Outra mudança, menos visível - porque usa uma prótese em espuma - é ter perdido a mama. “De um lado sou uma tábua rasa”, diz sem pudor, explicando que quer fazer a reconstrução, mas que a fará no tempo certo, sem pressas.
A auto-estima de Maria Jorge desapareceu e ainda está a tentar recuperá-la. Continua a não se habituar com a imagem de mulher de cabelo curto que o espelho lhe devolve e duvida que alguma vez consiga. Aos poucos a pele foi recuperando do acne e, tal como o cabelo, as unhas dos pés, que perdeu, começam a crescer. As das mãos não caíram mas ficaram cinzentas num contraste “pouco saudável” com a pele que estava amarelada. Também não utilizava maquilhagem no dia-a-dia mas passou a fazê-lo para se “ver melhor”.
Rita Alfacinha não foi o primeiro caso na família, onde já pairava “o fantasma do cancro”. Mas esse facto não a fez viver a doença como quem já percebe muito daquilo. “Foi um choque quando me disseram que o que tinha não era benigno. Pensei que era o fim, acho que todos pensamos nisso”. Pelo menos até alguém explicar que há solução e lembrar que “desistir ou desesperar” não vai contribuir para a cura. Decidiu que ia olhar para o cancro de caras e que não o ia esconder. “O cancro ainda assusta as pessoas. Até há pouco tempo ter cancro era sinónimo de estar condenado à morte ou a não ter qualidade de vida para o resto dela, fosse esse tempo seis meses ou 20 anos”, diz. “O cancro precisa de ser normalizado”, até porque, afinal, veio para ficar. “Já todos conhecemos alguém que tem ou teve cancro. E infelizmente cada vez mais pessoas vão ter, está provado”, refere.


