Sociedade | 29-10-2025 15:00

“A política é um monopólio do Direito e da Economia e onde quase mais ninguém lá entra”

“A política é um monopólio do Direito e da Economia e onde quase mais ninguém lá entra”
Miguel Castanho, investigador do Instituto de Medicina Molecular e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa - foto O MIRANTE

Miguel Castanho foi uma das vozes da comunidade científica e académica que questionou publicamente em tom crítico a decisão do Governo de fundir a Fundação para a Ciência e a Tecnologia com a Agência Nacional de Inovação, que darão lugar à Agência para a Investigação e Inovação. O investigador do Instituto de Medicina Molecular e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa afirma que foi um cortar a direito, sem discussão com os agentes do sector e com objectivos ainda por descortinar. Nesta conversa com O MIRANTE, o cientista natural de Santarém considera que a ciência é uma espécie de parente pobre na agenda mediática nacional e critica a classe política que vive numa bolha.

Tem sido um crítico contundente da fusão da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) com a Agência Nacional de Inovação, para dar lugar à Agência para a Investigação e Inovação. Acha que o Governo teve pouca sensibilidade ou tacto neste processo? Foi um cortar a direito?
Talvez a expressão cortar a direito seja adequada. Não é tanto a fusão em si, mas é o facto de este passo, que é extremamente importante e que dá outra forma e redesenha o exercício da ciência em Portugal, não estava, por exemplo, no programa do Governo. Nunca foi falado antes, nunca foi discutido em qualquer comissão ou no seio da comunidade científica. Ninguém consegue explicar o que vai acontecer, como vão juntar duas estruturas que são muito diferentes. Isso tem de ser muito bem pensado. Às vezes, fazer alguma coisa pode ser pior do que não fazer nada.

A comunidade científica não foi ouvida?
Não foi ouvida. Dá a sensação de que foi algo muito rápido, decidido de um dia para o outro. Não consigo perceber porquê. Repare que até para um governo de direita podia ser uma medida considerada estruturante, porque tradicionalmente, nos governos de direita, a economia vem acima da ciência. A ciência deve ser útil. Este passo não foi pensado assim, não estava no programa do Governo e dá a ideia de, até prova em contrário, não ser algo que tem como motivação o exercício da ciência ou o exercício da inovação ou sequer a reforma da economia. Provavelmente, tem como seu grande motor a chamada reforma do Estado. Eventualmente, juntar dois organismos foi mais importante do que quais são os organismos e quais as consequências.

E dá também um sinal para a sociedade de que se pretende o emagrecimento do aparelho do Estado.
A ciência precisava de uma nova ideia e de um novo pensamento e de uma reforma. Mas não quer dizer que qualquer coisa que se faça vá ser benéfica.

É uma decisão política que pode lesar a investigação científica?
Pode lesar, se não for bem aplicada. Se me tivessem dito durante a campanha eleitoral para as legislativas que a AD teria planos para redesenhar o mundo da investigação, tornando-o mais próximo da inovação, tirando mais partido da continuidade das duas coisas, eu veria aí uma lógica e entenderia isto.

E não seria apanhado de surpresa.
Exactamente. O problema aqui é que nunca ninguém falou em fusão. De um dia para o outro, no final de um Conselho de Ministros, sem ninguém estar à espera, dizem-nos que vai acontecer e não conseguem explicar qual é o problema que isto vai resolver. Devia haver um elencar dos problemas e por que é que a fusão vai resolver esses problemas.

Há aqui um menosprezo em relação ao sector da ciência, da tecnologia, da investigação?
Menosprezo é uma palavra muito forte. Creio que a ciência não é vista como um dos sectores de actividade de muita importância mediática nem de muita importância eleitoral. O seu capital político é reduzido. E face a outros objectivos, como a reforma do Estado, a contracção do número de organismos do Estado, a ciência perde. Mas não vou chamar-lhe menosprezo.

“Hoje, temos quase só políticos de carreira”

Essa realidade pode ser reflexo de haver pouca gente da ciência em lugares de decisão política?
Sem dúvida que uma das razões para a ciência ter pouco peso político é porque há poucas pessoas da ciência na política. E isso tem duas razões: por um lado, a política é um monopólio de pessoas do Direito e da Economia, quase mais ninguém lá entra; por outro lado, também tenho de reconhecer, embora seja a minha comunidade, que poucos cientistas se chegam à frente.

Nunca pensou enveredar pela política e tentar ajudar a mudar as coisas por dentro?
Eu, de vez em quando, dou passos. Pelo menos tenho intervenção pública, expresso a minha opinião, o que também é política no verdadeiro sentido da palavra. Não sou daqueles que acham que o espaço público deve ser deixado aos políticos, porque aos cientistas cabe o papel tecnocrático e só podem falar de coisas técnicas. Acho que não. Os cientistas têm opinião e podem contribuir para a sociedade. Expresso regularmente a minha opinião no espaço público, agora fui mandatário da candidatura do PS em Santarém e também já estive como vice-presidente na Fundação para a Ciência e Tecnologia.

A breve passagem da cientista Elvira Fortunato por um Governo como ministra não foi suficiente para alterar esse panorama?
Não foi. Aliás, já tivemos outros ministros ligados à ciência. Geralmente, nos governos PS a ciência tem um ministério próprio; tipicamente, nos governos PSD, a ciência junta-se com a educação no mesmo ministério. Nos governos PS, habitualmente, há um cientista à frente do ministério para a ciência. Foi a professora Elvira Fortunato, foi o professor Manuel Heitor, foi o professor Mariano Gago…

Mas isso não tem sido suficiente para dar mais importância à ciência na agenda política.
Tem pouco peso na agenda política. Tem mais peso no discurso político, tal como a cultura, do que na acção política. A ciência é muito valorizada nas palavras mas tida muito pouco em conta na acção. Esta medida, que é profundamente impactante no mundo científico, foi feita sem a auscultação de qualquer organismo ou de qualquer comissão.

Como interpreta isso?
A minha interpretação é a de que, de facto, não há uma grande repercussão política, e também não há uma grande repercussão pública, daquilo que seja o sentimento da comunidade científica.

E passa também ao lado da população em geral.
Sim, passa ao lado dos eleitores em geral. Ou seja, passa ao lado da grande agenda política. As coisas são o que são.

Há seis anos, numa intervenção em Santarém, dizia que é necessário haver sensibilidade por parte dos governantes para tratarem as questões da ciência e da tecnologia com mais seriedade. Essa premissa mantém-se actual?
Completamente. Tivemos o período da pandemia, em que houve uma maior visibilidade da ciência, em que parecia que as coisas podiam mudar. As reuniões do Infarmed, que tiveram coisas positivas e negativas, pelo menos levantaram a necessidade de haver uma interacção permanente, em que os cientistas poderiam ter alguma coisa a dizer para guiar a acção política. Mas a pandemia passou, veio a guerra, e voltámos um pouco à velha rotina. Esquecemos um pouco tudo o que deveríamos ter aprendido nesse período.

É um desiludido com a classe política?
Só se desilude quem se ilude. Quem uma vez se iludiu, pode-se desiludir a seguir. Sempre vivi muito próximo do mundo da política, por razões familiares, sempre conheci muito bem o mundo da política, com todas as suas forças e os seus lados negativos, portanto não tenho propriamente uma desilusão com a política. Mas tenho saudades do tempo em que a política era feita voluntariosamente por pessoas que até nem dependiam da política e que se entregavam à política não por carreira mas por devoção. Foram as primeiras gerações após o 25 de Abril, com muita gente que se dedicou à política porque achou que havia um país para construir. Hoje, temos quase só políticos de carreira. Hoje temos quase só pessoas a viver não para a política mas da política.

E muitos sem grande experiência profissional acumulada fora desse mundo.
Toda a experiência que têm é daquele mundo do partido, com todas as suas intrigas e jogos. Viveram naquilo e aquilo é o mundo deles. Não tenho nada contra os políticos profissionais, os que sempre viveram da política. Mas acho que a política precisa de um mundo mais rico, que não seja só dessas pessoas, um mundo mais diverso, com gente dos vários sectores de actividade e que traga mais colorido à política. Porque assim torna-se um jogo político com pouca ligação ao mundo real. E depois o eleitorado manifesta-se…


“As pessoas que inventaram a vacina do Covid-19 nunca terão o reconhecimento público que tem uma estrela de futebol ou da música”



Não é frustrante trabalhar numa área tão importante e com tão pouca visibilidade na sociedade?
A resposta é sim, é frustrante. Mas também temos a satisfação que a própria actividade nos dá, das descobertas que faz...

Um actor ou desportista de topo têm um impacto mediático incomparável.
Sim, mas todos os sectores de actividade perdem para o entretenimento. Não há correlação com a importância ou o impacto do que se faz. As pessoas que inventaram a vacina do Covid-19, que salvaram milhões de pessoas, nunca terão o reconhecimento público, muito menos os recursos, o dinheiro, que tem uma estrela de futebol ou da música. Comparado com a indústria do entretenimento, tudo perde.

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