Jorge Gonçalves é mestre da arte de fazer sapatos à mão
Em Fazendas de Almeirim há uma oficina onde se consertam e fazem sapatos de forma artesanal. O mestre do ofício é Jorge Gonçalves, que apesar de o negócio ter esmorecido garante que ainda há quem valorize uns botins em pele de vitela feitos à mão.
Entrar na oficina do sapateiro Jorge Gonçalves, nas Fazendas de Almeirim, é como ir parar a uma cápsula do tempo. Num tempo onde ainda não se fabrica calçado em série, mas onde um par de sapatos demora dia e meio a fazer. “É assim mesmo, dia e meio é o que demoro, não é como na China onde se fazem sapatos em quatro minutos”, diz de canivete na mão direita enquanto a esquerda ajeita o retalho de couro que está ainda longe da sua forma final. É a partir dali, explica, que vai nascer um par de botas, tamanho 37, feito à medida e gosto da amazona - termo usado para uma mulher que monta a cavalo - que os encomendou.
O sapateiro artesão da porta 19 da Rua Diamantino Máximo Monsanto chegou a Fazendas de Almeirim há mais de 30 anos para abrir uma sapataria. Só mais tarde é que, movido pela curiosidade e pelos pedidos dos clientes, começou a concertar sapatos e a fazê-los de raiz. Foi o tio, sapateiro em Pombal, de onde é natural, quem lhe “deu umas luzes” de como se fazia. Foi à sua oficina “passar oito dias”, os que bastaram para se estrear no ofício, ainda numa época onde “as pessoas economizavam” para conseguirem andar bem calçadas. “As pessoas ganhavam pouco, mas comprava-se um par de botins por 40 contos”, à volta de 200 euros na moeda actual. É praticamente a esse preço que vende os que fabrica manualmente ainda hoje. “Veja o que é que evoluiu o preço praticado, nada! Em contrapartida, os impostos, as matérias-primas, tudo isso disparou”, desabafa. A pele de vitela, uma das que mais utiliza no fabrico, triplicou, além de ser actualmente mais difícil de conseguir, sobretudo uma boa pele - ou seja, suave, o que em muito facilita o trabalho do sapateiro de 71 anos.
“É natural que assim seja. Há menos procura e, evidentemente, menos fabricantes. Hoje é tudo automático e tudo é igual”, diz com uma certa indiferença. Ali, o produto final é todo diferente. Não há, garante, um par de sapatos igual, até porque isso seria missão quase impossível já que o trabalho é 90% manual. Maquinaria só é usada para uma parte da costura. Até a palmilha é, como mostra, cosida manualmente com um fio de nylon enfiado numa agulha. Depois ainda se “enchem as almas”, que é como quem diz, o buraco que fica, para no fim levar as solas assentes com dois pregos.
“As pessoas passam a vida a deitar calçado fora”
A durabilidade do calçado que fabrica de raiz é superior a muito do que se vê nalguns pés. “As pessoas não pensam, mas deveriam pensar que passam a vida a deitar calçado fora. Fala-se muito no ambiente mas depois não se recicla, não se aproveita nada”. E, de facto, alguns nem para aproveitar dão, adverte. “Hoje compra-se um par de ténis por sete euros e meio. E se formos a ver bem, os sapatos estão condenados. Repare-se nos pés das pessoas: 99% tem ténis nos pés. E há quem gaste fortunas com o que não tem qualidade nenhuma. Às vezes vejo coisas nos pés das pessoas que digo assim: mas como é que conseguem calçar isto?”, questiona indignado. Depois acrescenta: “Os pés são o alicerce da pessoa. Devíamos andar bem calçados”.
Em mais de 30 anos de dedicação a um ofício que tende a desaparecer, “O Jorge” já calçou muitos ranchos de norte a sul do país, muitos fandanguistas, militares da GNR, equitadores, aprendizes e profissionais da tauromaquia. A família Telles era uma das que costumava bater-lhe à porta. Fez sapatos “excêntricos” para um cliente japonês e correu o país em feiras de todo o tipo, desde as medievais, onde as sandálias e sapatos típicos da época tinham saída, às gastronómicas e de época, como a Feira dos Santos, no Cartaxo, onde se lembra de haver 70 sapateiros. “Hoje, se calhar, não se vende lá um par de botins”. Foi precisamente o que vendeu nos 10 dias em que esteve, este ano, na Feira de Outubro em Vila Franca de Xira. “Um par de botins, já viu? Quando já vendi 100. Hoje vou a feiras para mostrar que ainda estou vivo”. Além de botas, botins, sapatos e sandálias faz malas, chapéus e cintos em pele.
Se não forem os pequenos nichos de mercado ou os clientes fidelizados que continuam a valorizar o seu trabalho, há muito que a oficina tinha fechado portas. Valem-lhe, diz, os clientes como um que lá tem dois pares de botas que mandou consertar, um dos quais com o cunho de “O Jorge”. Dificilmente, admite, conseguirá conquistar e fidelizar novos clientes, já que considera que os jovens não valorizam o calçado manufacturado, pelo menos ao ponto que querem investir para andar com ele nos pés.


